Ela viveu livremente, quebrando as regras que impunham completa submissão às mulheres no mundo luso-brasileiro
“Mulher de família só deve sair de casa três vezes na vida”, rezava um ditado bem conhecido: “para se batizar, para se casar e para ser enterrada”. Ana Paes, porém, com ajuda da sorte e das circunstâncias de momento, desprezara aquela regra e conseguira ser dona do próprio nariz. Ela provara ser capaz de administrar, sozinha, um dos maiores engenhos de Pernambuco. Tivera uma vida social intensa, na corte de Maurício de Nassau. Trocara de religião, passando de católica a protestante calvinista. Casara-se três vezes, com direito a um grande caso de amor entre o primeiro e o segundo matrimônio. E tudo lhe corria bem, até Nassau ser despedido do emprego de governador do Brasil Holandês e voltar para a Europa.
Então, os pernambucanos levantaram-se em armas contra os flamengos, que se viram de novo cercados no Recife, como nos primeiros tempos da invasão. O engenho de Ana fora totalmente destruído, numa batalha histórica. E a sua vida ficara muito difícil…
MULHER INCOMUM
Ana Paes Gonsalves de Azevedo nascera em 1617, filha de um casal pernambucano de muitas posses, e crescera alta, bonita e elegante. Casara muito nova, como era costume, com o capitão Pedro Correia da Silva, recebendo como dote o engenho Casa Forte, o maior da várzea do Capibaribe, fundado pelo seu avô, Diogo Gonsalves. Seu marido, porém, morrera, em 1635, lutando contra os holandeses que invadiram Pernambuco, deixando-a viúva aos dezoito anos de idade. Então, para surpresa geral, a jovenzinha assumira pessoalmente a administração da sua propriedade.
Por sorte, ao contrário de praticamente todas as mulheres daquele tempo, às quais – nem às ricas – não se ensinava a ler e a escrever, seus pais lhe haviam dado uma boa educação. E rapidamente ela aprendera a lidar com os fornecedores de cana, os feitores, os escravos, os comerciantes etc., conseguindo manter seu engenho entre os dez mais produtivos de Pernambuco, em meio a uma guerra. Nesse entretempo, ainda tivera um caso apaixonado com André Vidal de Negreiros, um dos comandantes da resistência contra os flamengos.
MUNDO NOVO
Os invasores, porém, venceram; Maurício de Nassau chegara, em 1637; e André Vidal partira para o exílio, na Bahia, ao passo que a jovem viúva ficara por aqui mesmo. E, tornando-se frequentadora da corte do conde, ela descobrira que os protestantes do norte da Europa eram bem mais liberais no trato com as mulheres do que os católicos do sul. Nas festas, por exemplo, as holandesas, inglesas, alemãs etc., bebiam alegremente e bem mais que os homens, para escândalo dos portugueses, espanhóis e brasileiros.
Aqui acolá, Ana também via esposas de soldados, que haviam sido infiéis aos maridos, passarem horas acorrentadas em praça pública, expostas ao calor do sol. E viu até algumas damas elegantes levando chibatadas, pelo mesmo motivo. Contudo, elas não eram assassinadas pelos chifrudos, como era a regra com as brasileiras.
Animada com aquele mundo novo, bem mais livre e movimentado que o anterior, Ana logo aprendera a falar alemão e flamengo. E casara com o capitão Charles Tourlon, comandante da guarda pessoal de Nassau, adotando a religião calvinista e tendo com ele uma filha, batizada Isabel. Um casamento bem de acordo, aliás, com a política de Nassau, que incentivava as uniões entre flamengos e luso-brasileiros, para aproximar esses povos e consolidar a ocupação.
Inesperadamente, porém, o conde mandara prender Tourlon, acusando-o de traição e despachando-o de volta para a Europa, levando com ele a pequena Isabel. Mas, como aquele episódio não fora bem esclarecido, as más línguas, imediatamente, levantaram a hipótese de que Nassau, interessado na exuberante pernambucana, quisera se livrar do marido inconveniente. Tal como, na Bíblia, o rei Davi, se livrara do soldado Urias, esposo de Betsabé…
Mas o fato é que, sozinha novamente, Ana começara a viver com Gilberto With, conselheiro de justiça do governo. E com ele se casara, em 1645, pela terceira vez, após chegar ao Recife a noticia da morte de Charles Tourlon. Naquele ano, porém, começara a Restauração, e o seu engenho Casa Forte servira de palco a um episódio vergonhoso para a bandeira flamenga.
Uma importante batalha da Restauração
Um ano após a partida de Nassau os pernambucanos se levantaram, sob o comando de João Fernandes Vieira. E os flamengos foram surpreendentemente derrotados já na primeira batalha, no Morro das Tabocas, em Vitória de Santo Antão, no dia três de agosto de 1645. Então, uma coluna do seu exército, marchando de volta ao Recife, acampara na propriedade de Ana Paes. E, por vingança, revistara o povoado da Várzea, que ficava próximo, sequestrando várias esposas e parentes de líderes rebeldes, que lá estavam abrigadas.
Ao saber do ocorrido, o exército nativo, que estava em Tejipió, acudira imediatamente, chegando ao Casa Forte no dia 17 de agosto. Os flamengos, então, se refugiaram na casa-grande, e cometeram a baixeza de colocar as mulheres nas janelas, servindo-lhes de escudos. Mesmo assim foram atacados com fúria, tendo a derrota lhes custado 37 mortos, muitos feridos e mais de trezentos prisioneiros, além de grande quantidade de armamentos, cavalos e víveres. E o engenho de Ana fora incendiado.
A partir daí, a pernambucana, seu marido holandês, e os dois filhos do casal, Cornélio e Elizabeth, começaram a passar grandes dificuldades. Como nos primeiros tempos da “Guerra Velha”, entre 1630 e 1637, os flamengos foram novamente cercados no Recife e voltaram a depender dos suprimentos enviados da Europa. “Fome” era a palavra mais comum nas Generale Missiven, os relatórios enviados para a direção da Companhia das Índias. Um drama que piorou ainda mais quando a Grã-Bretanha declarou em guerra contra os Países Baixos, em 1652. E só terminou em 1654, com a capitulação holandesa.
Nas negociações, Ana foi considerada da mesma nacionalidade que o marido e pôde partir com ele para a Holanda, onde reencontrou sua filha Isabel. Mas perdeu todas as suas propriedades. E morreu por lá, em 1674, sem jamais ter voltado à sua terra natal.
Anos depois, contudo, após um tratado firmado com Portugal, seus herdeiros moveram e ganharam uma ação indenizatória pelos bens da família. E o antigo pátio do engenho Casa Forte se tornou uma bela praça, no século vinte, com o primeiro jardim público criado pelo grande paisagista Burle Max.
Mulheres da Holanda
Muito ao contrário dos portugueses, os holandeses, em geral, evitavam o “comércio carnal” com criaturas de outras raças, como as negras e as índias. Daí a importação de prostitutas europeias, cujos nomes ou apelidos — Cristina Harmens, Ana Loenen, Janete Jans, Maria Krack, Sara Douwaerts, Maria Cabelo de Fogo e Chalupa Negra, por exemplo —, ficaram registrados nos anais da Companhia das Índias. Assim como ficaram registradas diversas reclamações de religiosos contra elas, por “desencaminharem pessoas honradas”. Os bordéis do Recife, aliás, frequentados por homens e mulheres de muitas raças e países, foram classificados como “os mais vis do mundo”, num relatório enviado à direção da Companhia, em 1641.
Mulheres de Tejucupapo
Famintos, encurralados no Recife e em Itamaracá pelas tropas pernambucanas, um grupo de flamengos planejou, em 1646, uma sortida para conseguir alimentos — frutas, farinha, gado, e o que mais fosse possível. Eles decidiram assaltar o povoado de Tejucupapo num domingo, sabendo que, nesse dia, os homens costumavam ir vender seus produtos numa feira, em outro local. Mas foram frustrados porque quatro Marias — Maria Camarão, Maria Quitéria, Maria Clara e Maria Joana — chamaram suas companheiras à luta. Com tachos e panelas de água fervente misturada com pimenta, entre outras armas improvisadas, e com apoio dos poucos homens que haviam ficado por lá, elas puseram os assaltantes para correr.