O conde e ele eram tão próximos que chegaram a se associar para aplicar desfalques na Companhia das Índias
Maurício de Nassau partiu de má vontade, em maio de 1644, após ser demitido do cargo de governador do Brasil Holandês. Mas seu futuro estava garantido. Além de ter ganho muito dinheiro, por aqui, já recebera várias propostas da Europa. Para o seu secretário, porém, a situação ficou bem ruim. Além de ter perdido o emprego e a honra de conviver com aquele nobre finíssimo, ele, aproveitando-se do cargo, armara inúmeros trambiques para cima de muita gente, em Pernambuco. E sentia-se agora ameaçado, sem a sombra protetora do ex-patrão.
Mas Gaspar Dias Ferreira era um lutador que já vencera muitos desafios, nos seus 47 anos de vida. E os tempos turbulentos que se anunciavam, após a saída do conde, certamente abririam novas oportunidades para um sujeito esperto como ele…
O NEGOCIANTE
Nascido em Lisboa, filho do cristão-novo Pedro Dias Ferreira, Gaspar viera para cá ainda rapazinho, com 17 anos, em 1614, e se dera muito bem. A partir de 1609 começara a vigorar a chamada “trégua dos doze anos”, na guerra entre a Federação dos Países Baixos e a Espanha – na época, dona de Portugal; e, portanto, também, do Brasil – abrindo-se um intenso tráfego comercial entre a Holanda e Pernambuco.
Esta capitania contava, então, com 121 engenhos “correntes e moentes”, e só em Amsterdã havia 26 refinarias trabalhando com o açúcar aqui produzido. Um negócio muito lucrativo para os negociantes judeus de origem lusitana estabelecidos naquela cidade, capazes de falar português e flamengo. E Gaspar, como um dos seus representantes, chegara a ser dono de vários armazéns no porto do Recife.
Com o reinício da guerra, porém, em 1621, aquele movimento fora suspenso. Em consequência, no mesmo ano fora criada, nos Países Baixos, a Companhia das Índias Ocidentais, com participação financeira da comunidade judaica de Amsterdã. E, em 1630, Pernambuco fora invadido, para tristeza de Gaspar, que, nos anos seguintes, de muita luta, perdera quase tudo que possuía. Mas sua vida mudara para melhor, novamente, em 1637, com a vitória flamenga e a chegada de Nassau.
O ASSESSOR
O fato é que o conde viera governar uma autêntica Babel, onde havia gente de inúmeras nações. E, embora dominasse várias línguas, ele não falava o português e o tupi, afora desconhecer os costumes locais. Então, para assessorá-lo, contratara Gaspar. Que, aos poucos o conquistara, logo passando a usar a influência do seu cargo em benefício próprio.
Entre outros golpes, por exemplo, o secretário se apossara de bens das ordens dos franciscanos, beneditinos e carmelitas que haviam partido de Pernambuco, em 1635, quando Matias de Albuquerque ordenara a retirada de todos os moradores para a Bahia. A intimidade dele com Nassau chegara ao ponto de os dois, juntos, montarem um esquema de contrabando de escravos africanos, em prejuízo da sua empregadora, a Companhia das Índias.
Descoberta a trama, a empresa advertira o governador e cobrara-lhe multa. O conde, porém, mantivera Gaspar, que lhe dava bons conselhos e ainda servia de intermediário com a comunidade judaica, ajudando a minimizar os problemas causados por ela.
O ISRAELITA
O fato é que, como Gaspar, muitos judeus haviam se transferido da Europa para Pernambuco. E continuavam chegando. Aqui fundaram duas sociedades religiosas, Kahal Zur Israel, a “Rocha de Israel”, e Maguén Abraham, o “Escudo de Abraão”, que, adiante, se fundiram. Eles tinham suas próprias escolas, cemitério e sistema de bem-estar social; e, novamente, por serem os únicos a falar fluentemente as línguas da terra e o flamengo, tomaram conta da banca, da cobrança de impostos, do comércio em geral. E tamanho poder incomodava muita gente, é claro.
Em 1637, a Câmara de Escabinos (vereadores) já protestava contra eles “por ser gente inclinada a falências e enganos, odiosa a todas as nações do mundo”. Os comerciantes cristãos também reclamaram, em 1641. E o Consistório da Igreja Reformada fez o mesmo, acusando-os de “seduzirem cristãos para o sacrílego judaísmo, circuncidarem cristãos, servirem-se de cristãos para criados em suas casas e de cristãs para suas concubinas”.
Nassau, porém, ciente da importância deles – geralmente cultos, além de excelentes coletores de impostos – no seu governo, soubera manter a paz, controlando os excessos de ambos os lados. No seu tempo, aliás, os judeus em Pernambuco chegaram a quase mil e quinhentos.
Um agente secreto a serviço de Sua Majestade
E tudo corria bem até que, em 1640, Portugal se separara da Espanha e fizera a paz com a Holanda. Logo, cessara o apresamento das naus lusitanas que saíam carregadas de açúcar do Rio e da Bahia, até aí a maior fonte de renda da Companhia das Índias. E Nassau, que governava muito bem, mas não sabia economizar despesas, fora demitido, deixando em suspenso o futuro do seu secretário.
Gaspar, porém, não perdera tempo. Em segredo, antes mesmo da partida do seu patrão, ele e outros proprietários se reuniram e concluíram que, sem o conde, seria impossível suportar o arrocho da Companhia, que cobrava impostos e juros altíssimos. E sugeriram a Portugal oferecer a ela dois milhões de cruzados como indenização pela sua saída do Brasil, a serem pagos com açúcar, em prestações. Enquanto isso, os pernambucanos iriam à guerra, para forçá-la a aceitar o acordo.
O Conselho Ultramarino até ficara favorável à proposta. Mas o rei, D. João de Bragança, com medo da vizinha Espanha, da qual era protegido apenas pela marinha e o exército flamengos, a rejeitara. “Já não tem lugar”, ele dissera. A partir daí, a vida de Gaspar deu uma guinada.
Sentindo-se ameaçado e sem muito que fazer em Pernambuco, ele embarcou para a Holanda, onde foi bem recebido pela comunidade judaica de Amsterdã e tornou-se cidadão dos Países Baixos. Mas, por baixo dos panos, passou a trabalhar como agente da coroa portuguesa, até ser preso, em 1646, pelo crime de alta traição. Em 1649, porém, fugiu da prisão, corrompendo a guarda. E nunca mais foi pego, apesar do prêmio de seiscentos florins oferecido pela captura de “um homem de cerca de cinquenta anos, baixo, gordo, da cor morena”, conforme o anúncio distribuído pelas autoridades.
Dois anos depois, em Lisboa, Gaspar ganhou a Ordem de Cristo, a mais importante comenda lusitana, por “procurar a graça e valia do Conde de Nassau, por meio da qual sustentou religiosos e livrou muitos seculares da ira do conde, obrando com cautela, astúcia e evidente perigo de vida”. E continuou a transitar clandestinamente entre Portugal e Holanda, até findar seus dias como encarregado da biblioteca da sinagoga portuguesa de Amsterdã.
Na próxima semana, trataremos da bela Ana Paes, uma mulher à frente do seu tempo.
Tolerância religiosa e intelectual
Perseguidos na Espanha e em Portugal, muitos judeus se transferiram para a Holanda, a partir do final do século dezesseis. Assim como muitos artistas e intelectuais não judeus, entre os quais Spinoza, Huygens e Descartes. Este último escreveu, em 1631: “Em que outro país se pode gozar de uma liberdade tão completa e se pode dormir menos inquieto? Em que outro país há sempre exércitos para nos proteger, e onde os envenenamentos, as traições e as calúnias sejam tão pouco frequentes?”. Enquanto isso, na Roma católica, Galileu Galilei era obrigado a renegar sua teoria de que a Terra girava em torno do sol para não queimar na fogueira, tal como Giordano Bruno fora queimado, em 1600.
De Recife a Nova York
Nas negociações de rendição com os flamengos, em 1654, ficou acertado que os judeus estabelecidos no Recife seriam reenviados para a Europa, e eles partiram num comboio de 16 naus, rumo a Amsterdã. Uma delas, porém, foi capturada por piratas, e seus 23 passageiros – quatro casais, duas viúvas e treze crianças – depois de muitas peripécias, desembarcaram em Nova Amsterdã, então um entreposto comercial da Companhia das Índias, na Ilha de Manhattan. E lá chegando apenas com a roupa do corpo, eles deram uma grande contribuição para o crescimento daquela feitoria, que viria a se transformar na metrópole de hoje.