Um dos maiores sociólogos do século XX, ele também foi um jornalista e político atuante no Brasil
Praça da Independência, ou “Pracinha do Diário”, no centro do Recife. Tarde do dia três de março de 1945. De uma janela do primeiro andar da sede do Diário de Pernambuco, um orador discursava pedindo o fim da ditadura de Getúlio Vargas, o restabelecimento do Estado de Direito e a anistia aos presos políticos. E era muito aplaudido pela multidão à sua frente, formada principalmente por universitários, os promotores daquele ato. Então, começou um tiroteio, promovido pela polícia, e Manoel Elias dos Santos, carvoeiro, e Demócrito de Souza Filho, acadêmico de Direito, tiveram seus nomes inscritos na extensa lista dos mártires pernambucanos, sacrificados na luta pela liberdade e pela democracia.
O orador — cujo nome também está inscrito na História — era Gilberto Freyre, um intelectual respeitadíssimo no País e fora dele, então adorado pelos estudantes. Mas que, tempos depois, iria decepcioná-los profundamente…
FORMAÇÃO
Gilberto de Mello Freyre nasceu em 1900, filho de Alfredo Freyre, catedrático da Faculdade de Direito do Recife, e de Francisca de Mello Freyre, sendo neto e bisneto de senhores de engenho. E até os dez anos de idade não sabia escrever, só desenhava.
Aos 14, porém, já dava aulas de latim. Aos 16, fez sua primeira palestra, no Cine Pathé de Nossa Senhora das Neves (hoje, João Pessoa), na Paraíba, dissertando sobre Spencer e o problema da Educação no Brasil. Aos 18, foi estudar na Universidade Baylor, do Texas, Estados Unidos, e iniciou sua colaboração com o Diário de Pernambuco. Aos 21, foi fazer mestrado na Universidade de Colúmbia, Nova Iorque. Aos 22, publicou por lá sua dissertação Vida social no Brasil nos meados do século XIX, ganhando o título de mestre e rasgados elogios de intelectuais norte-americanos de peso. E de lá partiu para uma viagem pela Europa onde travou contato com as correntes de vanguarda da época, tanto artísticas quanto políticas, e com os modernistas brasileiros Vicente do Rego Monteiro, Tarsila do Amaral e Brecheret.
De volta ao Brasil, organizou o livro comemorativo do primeiro centenário de fundação do Diário de Pernambuco, do qual se tornou redator-chefe aos 25 anos. Aos 27, foi nomeado chefe de gabinete do novo presidente (governador) de Pernambuco, Estácio Coimbra, que fora vice-presidente da República e era casado com uma prima do seu pai. Aos 28, passou, ainda, a editar o jornal A Província, onde também publicava ilustrações e caricaturas. Mas, aos 30, uma revolução deu um novo rumo à sua vida.
ANTI GETÚLIO
Em 1930, a Aliança Liberal, um frente política encabeçada pelo gaúcho Getúlio Vargas, pôs abaixo a “velha república” dos coronéis, prometendo ao País modernidade e independência dos interesses estrangeiros. A casa do pai de Gilberto — figura expressiva do antigo regime, em Pernambuco — foi, então, depredada pela malta; e Estácio Coimbra, deposto, partiu para Lisboa acompanhado pelo seu ex-chefe de gabinete. E foi lá, longe do dia-a-dia da política provinciana, que o jovem sociólogo deu início às pesquisas que fundamentariam sua obra prima, Casa Grande & Senzala, lançada em dezembro de 1933.
Nos anos seguintes, de volta à sua terra, Gilberto prosseguiu com o trabalho acadêmico, publicando Sobrados e Mocambos, em 1936, entre outras obras. Em 1941, casou com Maria Madalena Guedes. E colaborou com diversos jornais como o La Nación, de Buenos Aires, o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, O Estado de S. Paulo e o Diário de Pernambuco, sempre combatendo Vargas, mesmo após a implantação do Estado Novo, em 1937, que endureceu ainda mais a repressão aos oposicionistas.
Em consequência, ele passou um dia preso na Casa de Detenção do Recife, juntamente com seu pai, em 1942, por denunciar atividades nazistas e racistas no Brasil — inclusive em Pernambuco. Também teve livros apreendidos e parou de escrever para alguns periódicos, devido à constante violação da sua correspondência. Mas o regime populista e autoritário então vigente, semelhante ao fascismo do italiano Mussolini, não resistiria por muito tempo ao confronto com os democratas em geral, com os comunistas e também com os chamados “entreguistas” — os “testas-de-ferro” do capitalismo internacional, inimigos do nacionalismo varguista.
É certo que o varguismo modernizara a economia do País e criara a legislação trabalhista até hoje em vigor, o que lhe garantia o apoio das massas. Contudo, o engajamento do País na guerra contra o “Eixo” Alemanha, Itália e Japão, em 1942 — motivado pelo torpedeamento de navios brasileiros por submarinos alemães e incentivado pela ajuda norte-americana para a criação da Companhia Siderúrgica Nacional —, determinou seu fim.
Uma obra cujo valor não pode ser contestado
Cada vitória dos aliados contra as tropas nazifascistas, na Europa, representava uma derrota para Vargas, no Brasil. E ele colocou o pernambucano Agamenon Magalhães no Ministério da Justiça, em janeiro de 1945, com a incumbência de lhe preparar uma saída honrosa.
Agamenon, por sua vez, até aí interventor em Pernambuco, deixou no governo do estado seu antigo chefe de polícia, Etelvino Lins, que continuou a reprimir a oposição com a energia de sempre. Então, em março de 1945, houve o comício e o tiroteio em frente ao Diário de Pernambuco, que em seguida foi invadido, depredado e acusado por Etelvino, em nota oficial, de fazer agitação difundindo “ideias da Revolução Francesa”.
Em abril, porém, os presos políticos foram anistiados. Em maio, a guerra acabou na Europa. Em outubro, Vargas foi deposto pelos militares. E, em dezembro, houve eleições gerais com participação, inclusive, das mulheres, pela primeira vez no Brasil.
O general Eurico Gaspar Dutra tornou-se presidente, pelo PSD, com apoio de Vargas, que foi eleito senador por São Paulo e pelo Rio Grande do Sul, pelo PTB. E Gilberto Freyre conquistou um mandato de deputado federal constituinte pela UDN, em Pernambuco, com o voto da estudantada. Mas, apesar da sua atuação destacada no Congresso, não foi reeleito, em 1950, e retornou à vida acadêmica e ao jornalismo.
Aí, veio o golpe militar de 1964 e os estudantes saíram de novo às ruas, em defesa da liberdade. Gilberto, porém, dessa vez, ficou do lado oposto. Ele apoiou publicamente o regime de exceção, sendo inclusive nomeado para o Conselho Federal de Cultura pelo general Médici, no auge da ditadura, em 1969.
Por conta disso, a maioria dos meios acadêmicos trocou a admiração que lhe votava por repulsa e indignação — sentimentos só minimizados, pouco a pouco, após a volta da democracia. O valor da sua obra, fundamental para o entendimento da formação do Brasil, porém, jamais foi contestado, pairando acima de qualquer opinião sobre as posturas políticas do seu criador.
Gilberto Freyre, apelidado de “Mestre de Apipucos”, o bairro onde morava, morreu em 1987, dando hoje nome ao aeroporto do Recife e a ruas de várias cidades. Inclusive, Lisboa. E seus livros continuam sendo publicados e lidos em dezenas de idiomas.
A escrita de Gilberto Freyre
Ele não se dizia sociólogo, mas “um escritor treinado em Sociologia”. E Casa Grande & Senzala causou um tremendo impacto, em 1933, não só pelo conteúdo — uma contestação às teses então correntes que afirmavam a superioridade da raça branca, e o enaltecimento da mestiçagem promovida pelos portugueses no Brasil —, mas, também, pela alta qualidade literária, pela linguagem ao mesmo tempo popular e erudita. E, ainda, sem falsos pudores ao abordar questões sexuais, a ponto de ser taxada de pornográfica por muita gente.
Premiações
A lista das comendas recebidas por Freyre chega a ser cansativa, de tão longa. Afora as brasileiras, ele ganhou o título de Sir conferido pela Rainha Elisabeth da Inglaterra; a Grã-Cruz de Alfonso, El Sabio, da Espanha; a Legião de Honra da França; a Grã-Cruz do Mérito da Alemanha e a Medalha Picasso da Unesco, entre outras. Doutor Honoris Causa ele o foi pelas universidades de Coimbra (Portugal), Sorbonne (França), Colúmbia (EUA), Sussex (Inglaterra) e Münster (Alemanha), e pelas federais brasileiras de Pernambuco, do Rio de Janeiro e da Paraíba. Também foi delegado brasileiro em eventos como a 4ª Conferência da ONU, em 1949, que o escolheu para estudar o problema racial na África do Sul. E, além disso, a escola de samba da Mangueira desfilou no carnaval de 1962 com o enredo Casa Grande & Senzala.