Um presidente o convocou para “salvar” o Nordeste, e outro para tirar o País de uma crise profunda
Ao fim da Segunda Guerra Mundial (1939/1945) o mundo dividiu-se em dois grandes blocos, de acordo com as suas orientações econômicas e políticas: o socialista, sob o comando da União Soviética, e o capitalista, liderado pelos Estados Unidos. Essa nova ordem teve um forte impacto sobre o Brasil, inserido no então chamado “mundo livre”. E, particularmente, sobre o Nordeste.
A queda do Estado Novo — um regime nacionalista e autoritário implantado em 1937 por Getúlio Vargas — e a redemocratização do País foram suas primeiras consequências; e o tema das desigualdades regionais ganhou nova importância. A “guerra fria” entre as duas superpotências fez a pobreza nordestina deixar de ser vista apenas como um problema econômico e geográfico relacionado com a seca, e tornar-se uma questão social e política. Afinal, se as massas famintas daquela região se revoltassem o Brasil poderia marchar para o comunismo e até levar com ele a América Latina, o que muito preocupava o “Grande Irmão do Norte”.
Impulsionadas por esses interesses estratégicos — mas, também, com a colaboração de muita gente bem-intencionada que queria, de fato, combater a pobreza e o subdesenvolvimento —, medidas começaram a ser tomadas. E se alguém pode ser considerado um personagem-símbolo do esforço de “salvação” do Nordeste empreendido naquela época, é o economista Celso Furtado…
O CEPALINO
Celso Monteiro Furtado nasceu em 1920, em Pombal, no sertão da Paraíba, filho do juiz Maurício Medeiros Furtado e de Maria Alice Monteiro Furtado. Concluiu o segundo grau no Ginásio Pernambucano, no Recife, cursou Direito no Rio de Janeiro e em 1944 foi convocado pela Força Expedicionária Brasileira (FEB), servindo como suboficial na Itália durante a guerra. Depois foi fazer doutorado em Economia da Universidade de Paris-Sorbonne, concluído em 1948 com uma tese sobre a economia brasileira no período colonial. E lá conheceu sua primeira esposa, a química argentina Lucia Tosi.
De volta ao Brasil, Celso trabalhou na Fundação Getúlio Vargas, mas logo foi para o Chile, onde se integrou à Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), recém-criada pelas Nações Unidas. Dirigida pelo argentino Raul Prebisch, a Cepal tornou-se um importante centro de debates sobre disparidades de riqueza e gerou a única escola de pensamento econômico influente surgida no Terceiro Mundo. Os cepalinos analizavam as relações entre os países centrais — industrializados — e os periféricos — agrícolas — e propunham modos de intervir no processo de desenvolvimento desses últimos.
Retornando, de novo, à sua terra, Celso presidiu o Grupo Misto Cepal-BNDES, que produziu um estudo avançado sobre a economia brasileira, e em 1953 foi para a Universidade de Cambridge, Inglaterra, onde escreveu Formação Econômica do Brasil. Analisando a evolução e a distribuição da riqueza do País de acordo com a estrutura produtiva de cada período histórico — um método chamado de “estruturalista”, desenvolvido na Cepal — essa obra, publicada em 1959, já nasceu clássica. E teve grande influência no Plano de Metas lançado naquele ano pelo então presidente Juscelino Kubitschek.
JK, o “presidente bossa-nova”, pretendia que o seu governo (1956/1961), caracterizado pela construção de Brasília e pela industrialização acelerada, fizesse o País avançar “cinquenta anos em cinco”. E com seu entusiasmo contagiante convidou Celso Furtado para fundar e dirigir a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), e com ela tirar a região do atraso.
SALVACIONISMO
A ideia era recente, mas vinha ganhando força. No passado, os governos intervinham na região apenas durante as secas, abrindo frentes de trabalho que, em geral, só beneficiavam os latifundiários e os políticos. Em 1952, porém, durante o seu segundo governo, Getúlio Vargas criou o Banco do Nordeste, para facilitar o desenvolvimento regional. Em 1955, houve no Recife o Congresso de Salvação do Nordeste, com participação de empresários, intelectuais e políticos, propondo uma frente de combate à pobreza. E, em 1956, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, reunida em Campina Grande, Paraíba, colocou esse problema no centro dos seus debates, com grande repercussão na opinião pública.
De esquecido, o Nordeste virou o alvo das atenções. Parecia que o futuro do País seria nele decidido. Se não fosse “salvo”, seu povo faria uma revolução. Portanto, era preciso tomar providências. Nada que ameaçasse a propriedade privada, é claro; mas, ao menos, que fossem implantadas indústrias capazes de transformar alguns milhares de camponeses miseráveis em trabalhadores assalariados e a produção agrícola fosse melhorada.
Para isso a Sudene foi criada, em 1959, com sede no Recife, e começou a trabalhar sob a direção de Celso Furtado. Dois anos depois, contudo, o grande economista foi convocado pelo presidente João Goulart para debelar uma grave crise nacional.
Um grande pensador e também um homem de ação
“Jango” fora vice de Jânio Quadros — uma figura exótica que, eleito em 1960, renunciou intempestivamente em agosto de 1961. Tido como esquerdista, porém, teve dificuldades para assumir a presidência, devido à oposição dos militares. E teve dificuldades ainda maiores para governar, em função da herança deixada por Juscelino Kubitschek — que, de fato, modernizou o País, mas cujo “desenvolvimentismo” acelerou também a dívida externa, a dívida pública e inflação, já batendo na casa dos 70% ao ano, em 1962.
Nomeado ministro do Planejamento — o primeiro do Brasil — Celso Furtado lançou, então, um Plano Trienal que propunha a nacionalização gradual da indústria e a melhoria da distribuição da renda para aquecer o mercado interno. Mas o remédio, de longo prazo, não atendeu à urgência da doença. Em 1963, a inflação chegou a 90% e ele retornou à Sudene. Na sequência, veio o golpe militar de 1964 e seu nome foi um dos primeiros da lista de cassados pelo Ato Institucional nº 1.
Celso partiu, então, para o exílio no Chile, Estados Unidos, França e Inglaterra, a convite de algumas das mais prestigiosas universidades do mundo como Yale, Columbia e Cambridge, além da Sorbonne, da qual foi professor por vinte anos. Também esteve em muitos países a serviço da ONU, e, em 1978, casou-se com a jornalista e tradutora Rosa Freire d’Aguiar.
Com a anistia, em 1979, ele retornou, mais uma vez. Em 1985, ajudou a criar o Plano de Ação do presidente Tancredo Neves, que morreu antes de tomar posse. Foi, então, nomeado embaixador junto à Comunidade Econômica Europeia, pelo presidente Sarney. E, em seguida, ministro da Cultura, cargo que exerceu até 1988.
Nos anos seguintes, Celso Furtado retomou a vida acadêmica, participou de várias comissões internacionais, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras e faleceu no Rio de Janeiro, em 2004, deixando seu nome na História não só como o maior economista brasileiro, mas também como um homem de ação que pelejou, de fato, para tirar o seu país do subdesenvolvimento.
Nacionalismo
Em 1955, o Congresso de Salvação do Nordeste reuniu a elite política e intelectual da região, no Recife, e produziu uma carta denunciando “as condições de retardamento que mantém em plano inferior de vida todos os seus habitantes”. Elas seriam “o flagelo da secas, os latifúndios improdutivos, o analfabetismo, as endemias e as carências alimentares”, além das empresas estrangeiras, vistas nos anos cinquenta como grandes sanguessugas do País. E concluía pela “necessidade inelutável de se retirarem os entraves ao desenvolvimento regional”, inclusive “convocando o governo e a iniciativa privada a substituir por empresas nacionais as concessionárias estrangeiras de serviços públicos”.
Plano da Sudene
O Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN) da Sudene criou, em 1959, um Plano de Ação com quatro diretrizes básicas. A primeira seria facilitar os investimentos para a criação de indústrias. A segunda, diversificar a produção agrícola na Zona da Mata e assim aumentar a oferta de alimentos nas cidades, cuja população cresceria com a industrialização. A terceira, melhorar a produtividade do Semi-árido e torná-lo mais resistente às secas. E a quarta era a promover a ocupação do interior do Maranhão por camponeses que perdessem suas terras e ocupações, devido à reorganização da economia regional.