Ele queria ser lembrado como amigo das crianças, amado pelo povo, temido e odiado pelos fascistas
No ano de 1935, enfrentavam-se na Europa o movimento comunista, vitorioso na Rússia desde 1917, e o nazifascismo implantado em Portugal, na Itália e na Alemanha, e a disputa entre esquerda e direita estendia-se pelo mundo afora. No Brasil — governado provisoriamente por Getúlio Vargas, que chegara ao poder através de uma revolução apoiada pelo povo, em 1930 —, democratas e comunistas, reunidos na “Aliança Libertadora Nacional” (ALN), confrontavam-se diariamente pela imprensa e nas ruas com os “integralistas” de Plínio Salgado.
Então, no mês de julho, os comunistas lançaram um manifesto pedindo “todo poder à ALN”. Getúlio, em resposta, decretou a ilegalidade do seu partido. Que, em novembro, revidou com uma tentativa de golpe, liderada em Pernambuco por um sargento do Exército muito querido, respeitado, bondoso e valente…
VIDAS SECAS
Gregório Lourenço Bezerra nasceu em Panelas, no agreste pernambucano, em 1901. Aos quatro anos de idade já ganhou “uma enxada velha, gasta pelo tempo, e um cacareco de foice”, conforme anotou nas suas memórias, e assim equipado foi trabalhar na roça para ajudar sua família de agricultores paupérrimos. Aos sete, perdeu o pai, vítima de um acidente, e aos nove sua mãe morreu de pneumonia, agravada pela desnutrição. Então, os onze filhos do casal espalharam-se pelo mundo, vindo o pequeno Gregório para o Recife, onde fez biscates como carregador de bagagens e jornaleiro. Lá, “sem casa, dormia onde o sono me vencesse, comia quando ganhava algum dinheiro e era o dono de todas as calçadas e pés de escada da cidade”. Também foi carvoeiro e ajudante de pedreiro até se alistar, em 1922.
No Exército, ele se alfabetizou, em 1925; fez curso para sargento, em 1926; e em 1930 matriculou-se na Escola de Educação Física da arma. “Até aí era apolítico”, ele escreveu, “mas caíram-me nas mãos alguns livros sobre socialismo e, inspirado no exemplo e na luta heróica do povo soviético, desde a Revolução de 1917, achei o caminho que há muito procurava”. Filiou-se, então, ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), e cinco anos depois estava de armas na mão, tentando colocar o País no rumo que julgava ser o melhor para o seu povo.
O LEVANTE DA ALN
A Aliança Libertadora Nacional — o primeiro grande movimento de massas brasileiro — foi lançada publicamente em março de 1935, no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro. Trabalhadores, intelectuais e militares de diversas correntes democráticas e de esquerda se uniram numa frente para combater o avanço do integralismo. Seu programa incluía, entre outros itens, a suspensão do pagamento da dívida externa, a nacionalização de empresas estrangeiras, a reforma agrária, educação para todos e um governo popular com garantia das liberdades democráticas.
Luís Carlos Prestes, líder da coluna militar que na década anterior havia cruzado o Brasil por dois anos, tentando derrubar a “República Velha” pelas armas, mesmo ausente, foi aclamado seu presidente de honra. O “Cavaleiro da Esperança”, que gozava de imenso prestígio popular, havia aderido ao comunismo e encontrava-se na União Soviética.
Nos meses seguintes, a ALN fez comícios e passeatas em muitas cidades e recebeu milhares de adesões; assim como cresceram, também, a tensão política e os conflitos de rua com os “camisas-verdes” de direita.
Em julho, a Aliança promoveu manifestações para comemorar o aniversário dos levantes militares “tenentistas” da década de vinte. E, contra a vontade de muitos aliancistas não-comunistas, foi divulgado um manifesto propondo a tomada imediata do poder. Então, Getúlio aproveitou-se disso para, com base na Lei de Segurança Nacional — também conhecida como “Lei Monstro”, recém-promulgada, em abril —, ordenar o fechamento da organização.
Na ilegalidade, a ALN perdeu o contato direto com a população. E, na clandestinidade, ganharam força dentro dela os comunistas e os militares dispostos a derrubar Getúlio pelas armas, apesar de muitos deles considerarem que não havia condições objetivas para isso — entre os quais, Gregório Bezerra.
Em novembro, porém, o levante estourou no Rio Grande do Norte. Os rebeldes chegaram a controlar Natal por quatro dias, com apoio das massas — inclusive porque decretam que o transporte público seria gratuito e o povo pôde andar de bonde à vontade, sem pagar. Já no Rio de Janeiro e no Recife, onde os combates foram ferozes, não obtiveram sucesso. E como nada aconteceu no resto do País, o governo varguista abafou o movimento e deu início a uma violenta repressão contra todos os oposicionistas, vinculados ou não à ALN.
Em Pernambuco, chegaram a ser presos três secretários do governador Carlos de Lima Cavalcanti, que também respondeu a processo.
A “intentona comunista”, como aquela ação passaria a ser chamada, depreciativamente, ainda forneceu o pretexto para que, em 1937, Getúlio fechasse o Congresso e implantasse uma ditadura no País, o “Estado Novo”, que se estendeu até 1945.
Torturado e encarcerado por duas ditaduras
Apesar de julgar aquele levante uma ação precipitada, Gregório Bezerra não fugiu da luta e fez o que pôde para levá-lo a bom termo. Mas, ferido em combate, acabou sendo preso, torturado, e por fim condenado a 28 anos de prisão, dos quais chegou a cumprir dez anos nos cárceres do Recife, de Fernando de Noronha e do Rio de Janeiro.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a consequente queda do Estado Novo, em 1945, porém, ele foi anistiado. E nas eleições do ano seguinte foi o candidato a deputado federal constituinte mais votado no Recife e o segundo em Pernambuco, na legenda do PCB. Na Câmara, empenhou-se na defesa das crianças, dos jovens, dos trabalhadores rurais e dos ex-combatentes, até ter o seu mandato cassado em 1948, juntamente com outros treze parlamentares do PCB.
Gregório passou, então, a atuar na clandestinidade, junto aos camponeses de Goiás, Minas, Mato Grosso, São Paulo e Paraná até 1964, quando foi novamente preso, no interior de Pernambuco, tentando organizar a resistência ao golpe militar, ocorrido naquele ano.
Novamente, foi submetido a violentas torturas e depois condenado à prisão, dessa vez por 19 anos. Em 1969, porém, foi libertado pelo MR8, um grupo dissidente do PCB que fazia oposição armada ao regime militar e sequestrou o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Burke Elbrick, trocando-o por 15 presos políticos.
Nos dez anos seguintes ele viveu no México e na União Soviética, até a anistia de 1979. De volta ao Brasil, desentendeu-se com o PCB e filiou-se ao PMBD, pelo qual disputou o mandato de deputado federal por Pernambuco, em 1982, ficando na suplência.
Antes de morrer, em São Paulo, no dia 21 de outubro de 1983, Gregório Bezerra declarou que “gostaria de ser lembrado como um homem que foi amigo das crianças, dos pobres e excluídos, amado e respeitado pelo povo, temido e odiado pelos fascistas”. E assim está sendo até hoje, além dar nome a diversas ruas em vários estados do País.
Barbaridades
Ferido em combate, em 1935, Gregório Bezerra foi tirado do hospital pela repressão, espancado e torturado durante semanas; tal como seu irmão, o dirigente operário José Lourenço Bezerra, que não resistiu às sevícias e morreu, deixando a mulher viúva com cinco filhos pequenos. Em 1964, já com 63 anos de idade, Gregório foi preso no município de Cortês, levado para o Parque de Moto Mecanização do Exército em Casa Forte, no Recife, e lá violentamente espancado com uma barra de ferro pelo coronel Darcy Villocq, pessoalmente. Mergulharam, também, seus pés em solução de bateria de carro, obrigaram-no a andar sobre britas e arrastaram-no pelas ruas do bairro, amarrado pelo pescoço com uma corda, enquanto o coronel incitava a população a linchá-lo, numa cena chocante que escandalizou e revoltou os pernambucanos.
A história de um valente
Valentes, conheci muitos e valentões muito mais uns só valentes no nome e outros só de cartaz uns valentes pela fome outros por comer demais sem falar dos que são homens só com capangas atrás. Mas existe nesta terra muito homem de valor que é bravo sem matar gente mas não teme matador que gosta da sua gente e que luta ao seu favor como Gregório Bezerra feito de ferro e de flor.
Ferreira Gullar