Entre Portugal, Espanha e Holanda, ele optou pelo que lhe pareceu melhor, e quase mudou o rumo do Brasil
Em julho de 1635, tudo corria bem para Domingos Fernandes Calabar. Aos 26 anos de idade, tinha o posto de capitão e gozava de muito prestígio nas tropas flamengas que, desde 1630, tentavam se apossar de Pernambuco. O almirante Lichthardt, por exemplo, era seu amigo. O coronel Von Schkoppe, era padrinho de um dos seus filhos. E a vitória estava próxima. A queda do Arraial do Bom Jesus, principal reduto do incansável capitão-mor Matias de Albuquerque, ocorrida um mês atrás, fora a pá de cal na resistência dos portugueses e espanhóis. Um sucesso devido principalmente a ele, o brasileiro que tivera a visão e a ousadia de mudar de lado, em 1632, quando a situação dos holandeses não parecia nada boa.
Finda a guerra, coberto de glória, Calabar pretendia, agora, desfrutar a paz, ao lado de Bárbara, sua mulher, e dos seus meninos. O futuro lhe sorria. Antes, porém, ele resolveu acompanhar uma coluna destacada para ocupar a vila de Porto Calvo, vinte léguas ao sul do Recife. Era a sua terra natal e ele tinha alguns assuntos pessoais a resolver, por lá.
Aí, deu um tremendo azar…
PROBLEMA DE MESTIÇO
Calabar não nascera pobre. Seu pai era dono de três engenhos em Porto Calvo. E ele poderia ter ficado por lá mesmo, após a chegada dos holandeses. No começo, a luta se travava apenas em torno do Recife, onde os invasores foram cercados pelo capitão Matias. Mas aquele rapaz era inteligente, enérgico e ambicioso demais para manter-se quieto enquanto o mundo pegava fogo, ali perto. Então, se oferecera como voluntário a Matias, sob cujas ordens pelejara por dois anos. Tendo sido, inclusive, ferido em combate.
Aos poucos, porém, Calabar fora se frustrando. Por mais provas que desse de coragem e de uma extraordinária visão de estrategista militar, seu valor não era reconhecido. Seus problemas eram a pele morena, herdada da mãe – uma “negra da terra”, ou seja, uma índia –, e a “vileza” do seu nascimento, pois ela e seu pai português não eram casados. E no mundo luso-espanhol daquele tempo, racista, aristocrático, conservador, não havia muitas esperanças de ascensão social para um mestiço, um “mameluco”, como ele. Então, começara a se questionar.
QUAL O MELHOR?
Ora, ora – Calabar deve ter pensado –, que lealdade os brasileiros deviam aos portugueses, que vinham ao Brasil somente para explorá-lo e destruí-lo, chupando a sua substância? Que nunca produziram um só “repúblico”, ou seja, alguém preocupado com o bem comum, apenas gente interessada nos próprios negócios? Que eram atrasados e incapazes de produzir manufaturas, ao passo que os flamengos fabricavam todo tipo de instrumentos, armas e tecidos? E que fidelidade mereciam, por sua vez, os espanhóis, só pelo fato de, desde 1580, estarem mandando em Portugal?
E quanto à Igreja Romana? Era preciso ser fiel a ela? Não bastaria ser fiel a Jesus? Ora, os protestantes holandeses também eram cristãos. E, além disso, tolerantes com os fiéis de outras crenças, haja vista não perseguirem os judeus. Muito ao contrário dos católicos. A passagem da Inquisição por Pernambuco, entre 1593 e 1595, por exemplo, deixara um rastro de sangue e crueldade ainda lembrado, quarenta anos depois. Finalmente, se havia tantos mercenários vagando por ali, e de tantas nacionalidades – franceses, ingleses, polacos, germânicos, napolitanos e muitos mais – por que, em nome de Deus, ele não podia, também, alugar sua espada a quem quisesse? Então, Calabar trocara não só de partido como de religião, e o fiel da balança da guerra começara a pender para o outro lado.
Uma carreira militar brilhante com um final inesperado
Os holandeses, que possuíam as melhores tropas e marinha do mundo, acharam, a princípio, que conquistariam Pernambuco com facilidade. Mas, enganaram-se. A tenaz oposição de Matias de Albuquerque os prendera à beira-mar, como se fossem caranguejos. Por dois anos ficaram encurralados no Recife, passando fome e adoecendo. Então, aparecera Calabar, que conhecia tudo sobre aquela terra. E tendo, em pouco tempo, aprendido a se comunicar na enroscada língua flamenga, os conduzira para o contra-ataque.
O primeiro assalto fora a Igarassu, a segunda maior vila da capitania. Eles atacaram à noite, de surpresa, com um esquadrão de poucas centenas de homens, e lá apreenderam oitenta mil ducados em ouro e joias, além de gado e outras provisões. Porto Calvo e Serinhaém também foram vítimas dessa tática, mais eficiente do que a guerra tradicional e sem grandes e custosos deslocamentos de tropas. De quebra, muitos senhores de engenhos, temerosos de ver suas propriedades saqueadas e destruídas, passaram a se comprometer, secretamente, a não mais apoiar Matias, em troca de serem poupados.
Somente aí o capitão-mor reconhecera o valor de Calabar, e tentara trazê-lo de volta. Sem sucesso. Então, encomendara sua morte a um primo dele, Antônio Fernandes. Mas, em vez de morrer, Calabar matara Antônio. E tudo que ele planejava costumava dar certo. Inclusive, a captura do Arraial do Bom Jesus, após várias tentativas goradas. Até aquele infeliz episódio em Porto Calvo.
DESTINO CRUEL
Muita falta de sorte, para uns. Para outros, castigo de Deus pela traição. Ninguém, contudo, poderia imaginar que Matias de Albuquerque, vendo-se derrotado, ordenasse a retirada de todos os habitantes de Pernambuco para a Bahia. E que, conduzindo uma coluna de oito mil pessoas aflitas com aquela mudança forçada, passasse por Porto Calvo exatamente quando Calabar estava lá, cuidando dos seus negócios.
Pois foi o que aconteceu. E, tendo tido a sorte de capturar seu pior inimigo, já no finzinho da guerra, o capitão mandou, imediatamente, executá-lo. Segundo frei Manoel do Salvador, que lá vivia, “mal apontou a noite, tiraram Calabar da prisão, lhe deram garrote (estrangularam) e o fizeram em quartos (esquartejaram), com tanta pressa que nem lhe deram lugar a se despedir, receosos de que ele dissesse ou declarasse alguma coisa pesada”. Ou seja, além de uma vingança pessoal, tratou-se, também, de uma “queima de arquivo”, pois o mameluco sabia de muitas negociatas suspeitas com os flamengos. Que, para Matias, era melhor manter em segredo.
Já os holandeses, que retomaram Porto Calvo, dias depois, deram um enterro decente aos seus restos, expostos em via pública. Cada um dos seus três filhos menores passou a receber, também, oito florins mensais, o pagamento de um soldado. E se Calabar foi traidor ou não; e se a colonização pelos holandeses teria sido melhor para o Brasil; são temas de debate até hoje.
Entre dois mundos
O Império Espanhol, do qual Portugal fez parte, entre 1580 e 1640, era católico, aristocrático e conservador. Já a Federação dos Países Baixos era protestante, republicana e progressista. No primeiro havia a Inquisição e poucas oportunidades para quem não nascera nobre. No segundo, havia liberdade religiosa e de pensamento, além de apoio às ciências e às artes. Mas o que era bom para os flamengos não o era, necessariamente, para os povos que colonizavam. Tome-se, por exemplo, os sul-africanos, que sofreram muito com o regime de “apartheid”, imposto pelos eles.
Calabar, Camarão e Dias
Houve pelos menos dois brasileiros de pele escura que foram muito bem tratados por Matias de Albuquerque e, mais adiante, agraciados pelo rei D. João IV: o índio Felipe Camarão e o negro Henrique Dias. Acontece que ambos, além de soldados valorosos, eram, também, líderes das suas respectivas raças, cujo apoio era disputado por flamengos e luso-espanhóis. Já Calabar não representava nem comandava ninguém, a não ser ele mesmo. Até mudar de lado.