Enérgico, ousado, astuto, ele foi o agitadormor e umdos principais líderes da Revolução Praieira
Amanhã do dia dois de fevereiro de 1849 transcorria gloriosa para o conhecido advogado e jornalista Antônio Borges da Fonseca. Ele fazia história e tinha consciência disso. Uma tropa “praieira” sob seu comando entrara no Recife pelo sul, cruzara a Ponte da Boa Vista e avançava pela Rua Nova sob intenso tiroteio, enquanto outra coluna rebelde vinha pelo norte, ambas em direção ao Palácio do Governo. Quando se juntassem, o governador Manoel Vieira Tosta seria derrubado e a Revolução triunfaria em Pernambuco.
Sempre alerta e disposto a tudo, Borges soubera aproveitar as circunstâncias do momento. Se a fome e miséria do povo eram a pólvora, ele era o fogo que causara a explosão. E se até dois meses atrás era tido apenas como um “cabano”, um“jacobino”, um agitador radical que clamava no deserto, agora liderava um grande movimento popular. Aí, o inesperado veio atrapalhar seus planos…
POR QUE NÃO?
Borges nasceu na Paraíba, em 1808, filho natural de uma índia com o tenente-coronel Antônio José Vitoriano Borges da Fonseca, revolucionário de 1817 e de 1821. Do pai herdou o patriotismo e a valentia, que nele se juntaram a um intelecto poderoso e a um grande talento para a oratória. Membro da sociedade secreta “A Jardineira”, lançou seu primeiro jornal, a “Gazeta Paraibana”, aos 20 anos, em 1828, e logo foi preso devido às suas opiniões muito avançadas. Solto, transferiu-se para o Recife e depois para o Rio de Janeiro, onde fundou “O Repúblico”, jornal de oposição ao imperador que chegou a ser bastante influente.
Quando D. Pedro I abdicou da coroa, em 1831, Borges voltou para a Paraíba, onde foi secretário do Governo. Mas logo veio para o Recife, cidade populosa e movimentada, onde passou a advogar e a publicar seus jornaizinhos incendiários — chegaria a lançar 25, ao longo da vida! As injustiças sociais, fermento do pão que ele amassava, abundavam no País. E o forno estava quentíssimo, principalmente em Pernambuco, palco de tantas lutas antigas e recentes.
A desgraça começava com o desemprego nas cidades. A importação irrestrita de manufaturas deixava os artesãos nacionais sem encomendas e o comércio era controlado por estrangeiros. Já no interior, os agricultores sem terra eram obrigados a se submeter à vontade absoluta dos grandes proprietários, que também dominavam o campo político, elegendo quem queriam para ocupar os cargos públicos.
Em consequência, as revoltas sucediam-se, todas reprimidas com extrema violência. Mas, algum dia, alguma delas haveria de dar certo; e o ano de 1848, com os ventos da “primavera dos povos” européia cruzando o oceano e vindo soprar aqui, parecia bastante promissor.
Se, em Paris, o povo erguera barricadas nas ruas, derrubara o rei e implantara uma república, por que as massas brasileiras não seriam capazes de fazer o mesmo?…
ASTÚCIA POLÍTICA
Curiosamente, até dois meses atrás, os principais adversários de Borges eram os “praieiros” liberais e não os “guabirus” conservadores. Nos seus jornaizinhos, ele acusava a Praia de enganar o povo, falando em reformas só da boca para fora. Mas, quando esse partido foi apeado do poder em Pernambuco, onde estivera desde 1845, e os guabirus assumiram o governo e começaram a persegui-lo, ele soube tirar vantagem da situação.
Borges aproximou-se dos praieiros “novos”, os mais radicais, que estavam com ódio e com medo, e os instigou a promover um levante armado. A peleja começou em Olinda, em novembro, e logo se espraiou por Igarassu, Goiana e Nazaré da Mata, sob o comando do valente senhor de engenho Manoel Pereira de Morais.
Então, soube-se que o respeitadíssimo deputado praieiro “velho” Joaquim Nunes Machado voltara do Rio de Janeiro, disposto a usar seu prestígio para apaziguar os ânimos. E Borges — que, pelo contrário, queria ver o circo pegar fogo — imediatamente escreveu, imprimiu e mandou distribuir um panfleto acusando-o de covarde, traidor e vendido aos guabirus.
Foi o bastante. O altivo Nunes respondeu com uma furiosa declaração, reafirmando a fé em seu partido. Mas o derradeiro empurrão ainda estava por ser dado.
Pelo direito à vida, à liberdade e à soberania
No final de dezembro, os praieiros “velhos” prepararam um documento intitulado “A Bandeira do Partido Liberal”, reunindo propostas para apresentar ao governo que pusessem fim a tanta discórdia. Então, Borges reuniu-se com os praieiros “novos”, em Nazaré, e com eles montou outra agenda, com dez reivindicações, que recebeu o singelo título de “Manifesto ao Mundo”.
Era Pernambuco falando para o mundo pela primeira vez, diretamente de Nazaré da Mata!
Embora evitassem temas ainda polêmicos para muita gente, como o fim da escravidão e da monarquia, eles faziam outras exigências que, como sabiam, nem sequer seriam discutidas pelos conservadores. E, no fim, havia uma declaração de guerra: “Assim é que já não temos partidos, eles estão acabados. Hoje só há liberdade e regeneração, ou escravidão e aniquilamento. Venham todos a nós, que os receberemos como irmãos”.
Simbolicamente, a “Bandeira” foi lançada no último dia de 1848, e o “Manifesto”, no 1º de janeiro seguinte.
A perseguição aos praieiros cresceu, então, ainda mais, e aos “velhos” não restou alternativa senão a de pegarem em armas, junto com os “novos”. E foi criado um governo provisório em Água Preta, de onde eram lançados ataques de surpresa, utilizando a tradicional tática pernambucana de guerra de guerrilhas.
Então, o governador Vieira Tosta despachou uma grande tropa contra os rebeldes, mas estes a contornaram e atacaram o Recife, em duas colunas: a do norte, com João Roma, João Paes e Nunes Machado, sob o comando de Manuel de Morais; e a do sul com Pedro Ivo, Lucena e Leandro Cezar, liderada por Borges da Fonseca. E tudo corria bem quando se soube que o carismático deputado Nunes Machado levara um tiro na cabeça, no Largo da Soledade. Aí, os praieiros desanimaram e desistiram do ataque. E a Revolução, na prática, acabou ali.
Borges ainda ocupou a cidade de Brejo da Areia, na Paraíba. Porém, sem apoio popular, voltou à Pernambuco e foi capturado em março, sendo arrastado pelas ruas do Recife a ferros, como um escravo fugido. Preso em Fernando de Noronha e anistiado dois anos depois, ele lutou até o fim da vida por reformas que dessem a todos “direito à vida material, intelectual e moral, à liberdade e à soberania”. Em 1867, posicionou-se contra a guerra ao Paraguai, “filha do capricho, da injustiça e da iniquidade”.
Antes de morrer, em 1872, o eterno revolucionário determinou que, no seu velório, o caixão fosse posto de pé, na rua, fora da casa, estando ele com o braço estendido à frente, de modo que o povo pudesse vir cumprimentá-lo e se despedir apertando-lhe a mão. Hoje, é nome de rua em várias cidades brasileiras, inclusive no Recife. Na próxima semana, o general Abreu e Lima.
A Jardineira
Como os partidos só foram criados no Brasil em 1837, quem não fazia parte da classe dominante, até então, só podia participar da vida política através de alguma sociedade secreta. Os “jardineiros”, por exemplo, segundo Frei Caneca, pretendiam “instruir os homens e mudar os costumes por meio de constituições liberais que apadrinhassem eficazmente os direitos da espécie humana”, e seu objetivo “era unicamente o socorro da humanidade oprimida pelos revezes da cega fortuna, das injustiças e da tirania”. Tal como a maçonaria, eles usavam rituais e sinais de identificação, e “não obstante seus propagadores lhe confiram uma antiguidade religiosa e respeitável, data a sua existência de muito pouco tempo”.
O “Manifesto ao Mundo”
Nesse documento os praieiros, entre outras reivindicações, exigiam o voto livre e universal; a plena e absoluta liberdade de imprensa; o trabalho como garantia de vida para todos os cidadãos; o comércio a retalho só para os brasileiros; a efetiva independência dos poderes constituídos; a extinção do Poder Moderador, que dava ao imperador a palavra final sobre qualquer assunto; a reforma do Poder Judiciário, de modo a garantir os direitos individuais dos cidadãos; e a mudança do arbitrário sistema de recruta