Para Álvares de Azevedo, “Era um leão sangrento que rugia / Da glória nos clarins se embriagava / E vossa gente, pálida, recuava / Quando ele aparecia”. E sobre a sua morte misteriosa e o sepultamento no mar, Castro Alves versejou: “Que importa se o túmulo ninguém lhe conhece? / Não tem epitáfio, nem leito, nem cruz? / Sua cova é o peito do vasto universo / Do espaço, por cúpula, as conchas azuis”. E ainda: “Mas contam que um dia rolara o oceano / Seu corpo, na praia, que a vida lhe deu / Enquanto na glória rolava sua alma / Nas margens da História, na areia do céu”.
Não é pouco receber homenagens como essas, de tão grandes poetas. Mas o capitão Pedro Ivo Veloso da Silveira fez por merecê-las…
CAUSAS DA REVOLTA
Pedro Ivo nasceu em Olinda, em 1811, filho de um coronel, e viu muitas insurreições populares rebentarem em Pernambuco durante a sua infância e juventude. Como soldado, chegou a ser enviado ao Pará para combater uma delas, a Cabanagem, em 1835. E acabou se tornando o grande herói de outra, a Revolução Praieira, em 1848.
Uma das maiores causas das revoltas, então, era o desemprego. “Tudo nos vem de fora, sapatos, cômodas, cadeiras, calças e jaquetas”, protestava a “Folhinha de Algibeira”, em 1844, contra a importação irrestrita de manufaturas que impedia o desenvolvimento de uma indústria nacional. E o comércio também era monopolizado por estrangeiros. Dos setenta atacadistas então estabelecidos no Recife, menos de um terço eram brasileiros, e as seis mil casas retalhistas pertenciam principalmente a portugueses, que sequer contratavam caixeiros nativos, “só restando aos nossos jovens o mesquinho recurso dos empregos públicos ou a áspera vida de soldado” segundo a “Folhinha”.
Outro motivo de agitação eram os latifúndios que impediam o acesso dos pequenos agricultores à terra e o poder ilimitado dos grandes proprietários. A família Cavalcanti de Albuquerque, por exemplo, chegou a ser dona de uma terça parte de Pernambuco e a ter três senadores no Rio de Janeiro. Fatos que inspiraram o poeta Jerônimo Vilela a compor a famosa quadrinha “Quem viver em Pernambuco / Deve ser desenganado / Pois há de ser Cavalcanti / Ou há de ser cavalgado”.
PRIMAVERA POPULAR
Encontrar saídas pacíficas para aquela situação também não era fácil. Até 1837, sequer havia partidos políticos atuantes em todo o País, apenas linhas de pensamento que se articulavam através de associações públicas, como a Militar, ou secretas, como a Maçonaria. Só naquele ano surgiu o Partido Conservador, ou “Saquarema”, que veio “para frear o carro revolucionário”, nas palavras de um dos seus fundadores. E, em seguida, nasceu o Partido Liberal, logo chamado de “Luzia” — um pouco mais democrático, porém, na verdade, a outra face da mesma moeda. Quem mandava em ambos eram os cafeicultores, responsáveis por mais de 40% das exportações brasileiras, e os barões do açúcar, responsáveis por mais de 20%. E como dizia o deputado pernambucano Holanda Cavalcanti, “nada mais parecido com um saquarema do que um luzia quando está no governo”.
Na terra de Pedro Ivo, por exemplo, o Partido Conservador era controlado pelos Rego Barros e o Liberal pelos Cavalcanti de Albuquerque — famílias, inclusive, aparentadas entre si —, até que, em 1842, surgiu o Partido Nacional de Pernambuco, logo chamado de “Praieiro”, pois a sede do seu principal jornal, o “Diário Novo”, ficava na Rua da Praia. Fruto de uma dissidência dos liberais, ele juntava bacharéis, comerciantes, religiosos, militares e alguns proprietários em defesa de reformas, ganhando rapidamente um grande apoio popular. E o jovem capitão Pedro Ivo aderiu com entusiasmo.
Em 1844, os praieiros experimentaram o gosto do poder quando os liberais fizeram maioria na Assembleia Nacional e o baiano Chichorro da Gama foi nomeado presidente de Pernambuco. Em 1848, contudo, os “guabirus” conservadores voltaram com a corda toda, trocando juízes e delegados por gente sua e perseguindo os adversários políticos. Um retrocesso difícil de aceitar, principalmente quando sopravam da Europa os ventos da “primavera dos povos”.
Lá, naquele ano, várias nações se levantaram contra a dominação de outras. E, em Paris, as massas proletárias ergueram barricadas nas ruas, derrubaram o imperador e implantaram a Segunda República francesa, enchendo de esperanças os peitos de jovens idealistas daqui, como Pedro Ivo e seus camaradas.
O resultado só poderia ser a luta armada.
Um homem sozinho desafiando um império
Divididos, até então, em duas alas, uma mais moderada e pragmática e outra mais radical e sonhadora, os praieiros acabaram se unindo após a chegada, em dezembro, de um novo e implacável presidente para a província, o baiano Manoel Vieira Tosta. E homens até então sisudos e pacíficos como o advogado Jerônimo Tavares, o deputado Joaquim Nunes Machado e o padre Francisco de Faria acabaram partindo para a briga ao lado de radicais como João Roma, Henrique Lucena, João Paulo Ferreira e Leandro Cezar, com apoio de alguns proprietários e do povo em geral.
Em janeiro de 1849, os praieiros lançaram o seu “Manifesto ao Mundo”, exigindo voto livre e universal, liberdade de imprensa, garantia de trabalho e o fim do Poder Moderador, que dava ao imperador autoridade sobre os outros poderes, além da convocação de uma assembleia nacional constituinte. Eles estabeleceram sua sede em Água Preta e começaram a travar combates com os guabirus, no interior, até que no dia dois de fevereiro, audaciosamente, atacaram o Recife. Mas o assalto foi detido após o deputado Joaquim Nunes Machado ser morto com um tiro na cabeça, no Largo da Soledade. E, nos meses seguintes, o movimento foi perdendo impulso, com seus líderes se entregando ou sendo capturados, um a um.
Menos Pedro Ivo.
Como “um leão sangrento que rugia”, o valente capitão continuou pelejando à frente um corpo de guerrilha, embrenhado nas matas de Água Preta. E, rapidamente, tornou-se uma lenda que correu o País — um homem enfrentando o Império sozinho, batendo todas as tropas enviadas contra ele!
Sem conseguir derrotá-lo — pelo contrário, sendo humilhado a cada tentativa —, o governo, enfim, lhe prometeu indulto, se baixasse as armas. E, convencido por seu pai, Pedro Ivo apresentou-se na Bahia. Porém, em vez anistiado, foi traiçoeiramente levado para o Rio de Janeiro e trancafiado no Forte da Laje.
Mas o leão não ficou enjaulado. Com ajuda de seus irmãos maçons, fugiu da prisão, em abril de 1851, e após algum tempo embarcou clandestinamente para a Europa no navio “Vesúvio”, de bandeira italiana. Contudo, faleceu durante a viagem, súbita e estranhamente, e seu corpo foi lançado ao mar, em março de 1852. Hoje, é nome de rua no Rio de Janeiro, Florianópolis, Curitiba e Recife, entre outras cidades. E sua alma vive na glória, “nas margens da História, na areia do céu”.