Seus feitos, cantados no poema Prosopopeia, de Bento Teixeira, publicado em 1601, deram início à nossa fama de valentes
As dores lancinantes nas pernas, esmagadas pelo pisoteio de um cavalo. A vergonha de ter sido incapaz de proteger seu rei ou de não ter morrido, junto com ele. A humi-lhação de estar prisioneiro, embora não pela primeira vez. Cercado pelos mouros na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, norte da África, no dia quatro de agosto de 1578, o jovem rei português D. Sebastião, “o Desejado”, não se rendera e desaparecera, no turbilhão do combate. E Jorge de Albuquerque Coelho, que lutara bravamente ao seu lado, sofria e preocupava-se com o futuro.
Ficaria aleijado para sempre, caso saísse dali com vida? O que seria do seu irmão Duarte, também capturado? O que aconteceria com Portugal, cujo monarca não deixara sucessor e levara com ele a melhor nobreza do país? Qual o impacto daquela derrota sobre a sua terra natal? O aperreio de Jorge era justificado. A tragédia de Alcácer-Quibir teria enormes consequências para o Reino. Inclusive para Pernambuco, cuja fama de ser uma “nova Roma de bravos guerreiros”, aliás, começaria com ele…
A NOVA LUSITâNIA
Jorge nascera em 1539, quatro anos depois do seu pai, Duarte Coelho Pereira, tomar posse da capitania doada pelo rei D. João III. O donatário desembarcara ao norte, no li-mite com a vizinha Itamaracá, onde já havia alguma povoação. E depois de muito guerrear contra índios e franceses, fundara a vila de São Cosme e Damião, à mar-gem do rio Igarassu. Em seguida, mais abaixo, Olinda, na qual Jorge e seu irmão Duarte vieram ao mundo. E enquanto os meninos cresciam, a colonização se expandia. Ao chegarem à adolescência, ela se estendia até a várzea do rio Capibaribe, com vários engenhos e canaviais implantados num terreno muito favorável àquela cultura. Então, eles partiram para Portugal.
Em 1553, o velho Duarte fora a Lisboa, reclamar ao rei da retirada de alguns dos seus direitos de donatário. Deixara Pernambuco aos cuidados da mulher, D. Brites, e levara consigo seus filhos para estudar e conviver com a nobreza lusitana. Um ano depois, porém, morrera, sem ser recebido por Sua Majestade. E os rapazes ficaram por lá, aos cuidados dos Albuquerque, seus ilustres parentes do lado materno.
Em 1560, Jorge e seu mano mais velho, que se tornara o capitão-mor, após a morte do pai, ambos com vinte e pou-cos anos de idade, retornaram a Pernambuco. Na ausência deles, a colonização das terras ao sul, cobertas por uma mata frondosa, havia prosse-guido. E os dois se engajaram com entusiasmo naquele trabalho, que consistia em fazer o reconhecimento das áreas; depois, em expulsar os índios, seus antigos moradores; e, por fim, em ocupá-las.
PEQUENA LISBOA
As únicas vias de acesso ao interior daquela região eram os rios, como o Sirinhaém, o Formoso, o Una etc. Jorge chegou a explorar até o São Francisco, no limite sul da capitania. Nas suas margens iam sendo fundadas pequenas povoações que serviam como apoio para a implantação de engenhos, lavouras de mantimentos e fazendas de criação de gado nas redondezas. Assim surgiram Cabo, Sirinhaém, Porto Calvo, Alagoas, Penedo. E, sendo as terras distribuídas pelo sistema de “sesmaria” – ou seja, doadas a quem o donatário quisesse – assim também, naquela época, foram sendo formados grandes latifúndios e fortunas. João Paes Barreto, por exemplo, chegou a possuir oito engenhos no Cabo. E o pó branco neles produzido rendia muito dinheiro.
O açúcar alcançava preços altíssimos na Europa. Em consequência, a capital pernambucana logo se tornaria a vila mais importante da América Portuguesa, com uma população de mais de vinte mil “almas”. Já nas décadas seguintes, os governadores-gerais do Brasil passariam muito mais tempo lá do que na Bahia. Afinal, a vida na “Pequena Lisboa”, como Olinda era chamada, era muito mais rica e movimentada do que em Salvador.
A VONTADE DE DEUS
Jorge de Albuquerque, porém, não veria isso de perto. Muito orgulhoso e esquentado, naquele meio extremamente bruto da colônia, ele se desentendera com muita gente. Como, por exemplo, o florentino Felipe Cavalcanti, casado com sua prima Catarina. Por esse ou por outros motivos, encurtara sua estada em Pernambuco. E, na volta para Lisboa, em 1565, começara a criar sua fama.
A nau comercial Santo Antônio, na qual viajava, fora abordada por piratas franceses, e seu capitão logo determinara a rendição. Jorge, porém, não acatara a ordem e lutara por três dias, à frente de seis voluntários, com dois pequenos canhões, até ser vencido; ganhando a admiração, inclusive, dos inimigos. Em seguida, desabara uma enorme tempestade, e a Santo Antônio, depenada pelos corsários, que lhe roubaram até a bússola, quase foi a pique. Mas, com um pau de duas braças no lugar do mastro, uma velinha remendada com retalhos, o leme amarrado com tiras de couro e quase sem mantimentos, Jorge conseguira levá-la até Portugal. E por ordem do então regente, o cardeal D. Henrique, ela foi rebocada pelo rio Tejo acima, para que todos vissem “como opera a vontade de Deus”.
Uma lenda forjada no mar e no deserto
Treze anos depois, o rei D. Sebastião foi à guerra. Ele queria barrar o avanço dos turcos no noroeste da África, além de exaltar a glória do cristianismo, de Portugal e a sua própria, naturalmente. “O Desejado” organizou um exército de vinte mil homens, que custou uma fortuna aos cofres lusitanos, mas acabou derrotado e morto na bata-lha de Alcácer-Quibir (“grande fortaleza”, em árabe). Nela também morreram dois sultões marroquinos, o aliado Mulei Mohamed e o inimigo Mulei Moluco, sendo por isso chamada, por lá, de “Batalha dos Três Reis”.
Já famoso pelo desempenho no mar, Jorge de Albuquerque também se destacou nas areias africanas. Segundo a lenda, o rei perdera o cavalo no meio da luta. Então, o pernambucano lhe cedera o seu, e, mesmo a pé, seguira pelejando. Ferido e aprisionado, ele seria adiante resgatado, à custa de muita prata; tornando-se, ainda, o terceiro donatário de Pernambuco, após a morte no cativeiro do seu irmão Duarte.
Contudo, devido aos ferimentos nas pernas, não conseguiria mais andar. E, talvez por isso, nunca mais retornaria à sua terra. Jorge casaria com D. Ana de Redondo, com quem teria dois filhos, Duarte e Matias, e morreria em Portugal. Um reino que, além da perda dos seus melhores homens e dos prejuízos financeiros sofridos com a guerra na África, também ficara sem rei, pois D. Sebastião não deixara vestígios nem herdeiros.
Por conta disso, a coroa lusitana acabaria parando na cabeça do seu parente mais próximo, o espanhol Felipe II. E, na sequência, os holandeses, em guerra com a Espanha desde 1568, invadiriam Pernambuco, em 1630.
Um episódio que veremos seguir, ao tratarmos de Matias de Albuquerque, filho de Jorge, encarregado de defender a capitania do ataque flamengo.
Os dentes da rainha inglesa
Na Inglaterra daquele tempo, ter cáries nos dentes era ‘ostentação’, pois o açúcar que as provoca custava uma fortuna. E uma ostentação chique, porque a rainha Elisabeth (1533/1603), que ditava moda (como ditam as rainhas, até os dias de hoje), amava os doces açucarados, exibindo, por isso, uma dentadura bem estragada.
O fausto e o aparato de Olinda
Em 1645, frei Manoel do Salvador descreveria (com algum exagero, típico do estilo barroco) a riqueza da Nova Lusitânia. “Em Olinda”, ele anotou, no seu livro O valeroso lucideno, “as mulheres andavam tão louçãs e tão custosas que não se contentavam com chamalotes, tafetás, veludos e outras sedas, senão que arrojavam as mais finas telas e os mais ricos brocados. E eram tantas as joias com as quais se adornavam que pareciam chovidas em suas gargantas e cabeças as pérolas, os rubis, as esmeraldas e os diamantes. O fausto e o aparato das casas era excessivo, porque por mui pobre e miserável se tinha o que não possuía o seu serviço de prata. o que melhor traziam. O ouro e a prata era sem número, e o açúcar era tanto que não havia embarcações para carregá-lo, entrando e saindo do seu porto grandes frotas de naus e caravelas”.