Ele tentou fazer um acordo de paz com os brancos, após um século de lutas, mas o resultado não foi o esperado
“Sem negros, não há Pernambuco”, já dissera o padre Antonio Vieira. E estava certíssimo. Nesta capitania, que vivia da produção de açúcar, eles eram os pés e as mãos dos brancos. Até os holandeses que, quando aqui estiveram, enfrentaram dilemas de ordem moral e religiosa para assimilar a prática do cativeiro, não tardaram a aderir a ela. Daí o perigo representado por Palmares, o maior quilombo o País.
Aquele ajuntamento independente de escravos fujões, mulatos e índios significava mais do que uma afronta à soberania da coroa portuguesa. Além de ocupar terras valiosas, sua presença era uma ameaça às vidas e aos bens dos moradores das vilas e engenhos próximos. E o pior de tudo: ele fazia os cativos sonharem com a liberdade. Era um estímulo permanente à indisciplina; um chamado constante à rebelião; um perigoso canto de sereia, enfim, que precisava ser silenciado. Daí as dezenas tentativas de destruí-lo, ao longo de um século. Todas mal sucedidas.
Em 1677, porém, uma expedição comandada pelo experiente capitão Fernão Carrilho teve melhor sucesso e impôs muitas perdas a Ganga Zumba, o chefe principal do quilombo. Naquele confronto, um filho dele, Toculo, morrera e outros dois, Zambi e Acaiene, foram capturados, juntamente com uns vinte sobrinhos e netos. Seus dois principais generais, Ganga Muíça e Acaiuba, também foram mortos. E ele mesmo levara uma flechada, mas conseguira fugir pela mata, deixando para trás sua espada e uma pistola dourada.
Então, o governador de Pernambuco, Pedro de Almeida, aproveitara o momento de fraqueza do líder quilombola para lhe fazer uma proposta. Fora algo novo, jamais, até então, cogitado: firmar um acordo de paz! E Ganga Zumba aceitara, sem saber que, por causa disso, um jovem chefe apelidado de Zumbi se rebelaria contra ele…
TROIA NEGRA
Chamado pelos negros de “Angola Janga” (“Angola Pequena”, em língua bantu), o quilombo dos Palmares existia há mais de cem anos. Mas começara a ganhar importância quando os holandeses invadiram Pernambuco, em 1630, e o caos da guerra favorecera a fuga de escravos. Ele chegara a ocupar um vasto território, que ia do cabo de Santo Agostinho ao rio São Francisco, estendendo-se por muitas léguas pelo interior adentro. E abrigava de vinte a trinta mil “almas”, divididas em vários povoados chamados de “mocambos”, ou “cercas”. Lá, num terreno extremamente fértil, os palmarinos viviam muito bem da caça, da pesca, da coleta de frutas e do plantio de diversos cereais e hortaliças, além da “liamba”, “maconha” ou “fumo de Angola”, que os alimentava de sonhos. Também praticavam a cerâmica e a metalurgia; fiavam panos; e, em tempos de paz, comerciavam com as povoações vizinhas, cambiando alimentos e objetos de barro por ferramentas, armas e munição.
A língua que falavam era própria, resultante de uma mescla dos idiomas de muitas raças e culturas, e religião oficial era um arremedo de catolicismo. Mas as festas eram africanas, com batuques ouvidos à grande distância e dançarinos animados pela liamba e por um tipo de vinho extraído dos cocos das muitas palmeiras que havia na região. “Folga, negro, branco não vem cá”, eles cantavam. “E se vier, pau há de levar”.
NOVOS TEMPOS
Os holandeses foram os primeiros a combater Palmares seriamente. Sem resultado. E, após a Restauração, ele se tornara o maior pesadelo dos colonos e dos governos portugueses da capitania. Sua prosperidade causava medo. Os prejuízos provocados com as fugas de escravos e outras tropelias eram cada vez maiores. E parecia invencível, até Ganga Zumba (“grande senhor”, em bantu) ser batido e aceitar a oferta de Pedro de Almeida.
Em vez de mandar degolar os prisioneiros capturados, como de costume, o governador, espertamente, oferecera libertá-los, além de cessar com as hostilidades. Em troca, os palmarinos deveriam se submeter a ele e mudar-se para a região de Cucaú, a cinco léguas de Serinhaém, coberta de matas virgens, mas onde poderiam ter “comércio e trato” livre com a vizinhança. E teriam, também, de devolver todos os escravos fugidos, não nascidos em Palmares, que lá se abrigavam.
Muitos brancos criticaram aquele tratado, que lhes parecera favorável demais aos negros. Outros julgavam desonroso qualquer acordo com aquela “infesta canalha”. Mas a nova postura de negociar, em vez de agredir, tinha um bom motivo por trás: a ocupação de terras.
Ora, até então, a luta com os palmarinos se travara apenas pela posse de escravos. Naquele tempo, porém, o território onde eles viviam – considerado, unanimemente, o melhor da capitania – já era muito cobiçado. Para ocupá-lo, entretanto, era preciso tirar os negros de lá, algo que jamais se lograra antes e que, certamente, nem tão cedo se lograria. Então, chegara o momento de trocar a força bruta pela astúcia.
Um plano bem urdido, derrotado pelo imprevisto
Em junho de 1678, arribara ao Recife uma comissão quilombola que causara grande alvoroço. Portando arcos e flechas, os negros vinham quase nus, apenas com as “partes naturais” cobertas com peles ou panos. Tinham as barbas “umas trançadas, outras corridas, outras raspadas”, sendo “corpulentos e valorosos todos”. Ao se encontrarem com D. Pedro de Almeida, ajoelharam-se, abaixaram as cabeças e bateram palmas, saudando-o à moda africana. E, em novembro, o próprio Ganga Zumba viera assinar o acordo. Mas, pouco depois, o imprevisível entrara em cena: ele era jovem, coxo, e atendia pelo apelido de Zumbi, que quer dizer “defunto”, em língua bantu.
Zumbi, comandante de um dos mocambos de Palmares, acusou Ganga Zumba – negro de raça arda, famosa pela sua robustez, valentia e rebeldia – de ter falhado como general. De ter comandado suas tropas em estado de embriaguez, daí sua derrota. De ser corrupto. Mas a cláusula do contrato que previa a devolução ao cativeiro de todos não nascidos em Palmares foi o motivo maior da revolta. Aquilo era inaceitável.
Então, Zumbi marchou com seus liderados em direção aos demais mocambos, em alguns deles enfrentando resistência, mas, na maioria, encontrando adesão. E Ganga Zumba teve de se retirar às pressas para Cucaú, com apenas trezentos ou quatrocentos seguidores, prometendo voltar para “libertar” os que haviam ficado. Seu calvário, porém, estava apenas começando.
Em Cucaú, o grande chefe passou a sofrer assédio dos brancos. Sob o pretexto de temer o “perigoso bando” de negros comandado por ele, os proprietários locais, contrariando o governador, cercaram a área, impedindo que vingasse o prometido “comércio e trato” com a vizinhança. E, pior que isso, começaram a invadi-la para capturar quilombolas, alegando que se tratava de escravos fugidos.
Nessas circunstâncias, cada vez mais desgastado e enfraquecido, Ganga Zumba acabou sendo envenenado por alguns dos seus seguidores, que se sentiram traídos por ele, no ano de 1679. E o comando de Palmares ficou com Zumbi, do qual trataremos na próxima semana.
Nassau, o maior dos traficantes
Afora as hesitações morais e religiosas, os flamengos também duvidavam da eficiência do trabalho escravo. “Com cachorros ruins não se pegam coelhos”, diziam eles. Mas em pouco tempo aderiram àquele comércio extremamente lucrativo – uma “peça” que custava entre 12 e 75 florins, na Guiné ou em Angola, por exemplo, era revendida no Brasil entre 200 e 300 florins – e o fizeram crescer como nunca. Pode-se dizer até que, no comando das possessões brasileiras e africanas da Companhia das Índias, Maurício de Nassau foi o maior traficante de escravos do mundo, entre 1637 e 1644.
Valor de mercado
Por escassez de água doce nos navios negreiros, em especial nos trajetos mais longos, os cativos frequentemente recebiam água do mar para beber. Por esse motivo, entre outros, muitos deles, se não morriam a caminho, findavam pouco depois de desembarcar. Em consequência, os negros da Guiné, que era mais distante do Brasil, tinham menor valor de mercado. Já os mais valorizados eram os angolanos, considerados os mais saudáveis, pois sofriam menos nas viagens mais curtas para cá, além de dóceis e produtivos.