Ele chegou a desafiar o rei de Portugal, para forçá-lo a apoiar Pernambuco na luta contra Holanda
André Vidal tivera uma infância pobre e obscura, tal como seu grande adversário político, João Fernandes Vieira. Dizia André que seu pai, o português Francisco Vidal, fora um pequeno agricultor, fornecedor de cana para engenhos na Paraíba. Mas os inimigos dele juravam que o velho Francisco teria sido um carpinteiro, ou seja, um trabalhador manual, categoria apenas um pouco acima dos escravos, naquele mundo onde o “berço” era importantíssimo. Assim como os inimigos de João garantiam que ele era filho da “Benfeitinha”, uma mulata de má vida da Ilha da Madeira, e de um ladrão para lá degredado.
Porém, com muito trabalho, astúcia e sorte, André e João foram capazes de chegar ao topo, aproveitando a janela de oportunidades aberta pela invasão holandesa. E, após a capitulação dos flamengos, em 1654, pela qual foram os maiores responsáveis, eram os homens mais poderosos de Pernambuco. Acima deles só o general português Francisco Barreto de Meneses, que a todos comandava em nome do rei D. João IV. Mas Barreto logo iria embora, e a disputa entre ambos, que já se estendia por quase nove anos, ficaria ainda mais acirrada. Qual dos dois, por exemplo, seria nomeado o próximo governador desta capitania?
Essa questão seria resolvida com a intervenção do padre Antônio Vieira…
O GUERRILHEIRO
Se o começo e o fim dos seus caminhos eram semelhantes, o meio, porém, era bem distinto. João, de ajudante de açougueiro, tornara-se um grande proprietário, negociando com os holandeses; para dez anos depois dar início ao levante contra os seus antigos associados. Já André fizera toda sua carreira por dentro do exército, ascendendo de ajudante a mestre de campo (general) e lutando sem parar durante 24 anos.
André nascera na vila de Filipéia de Nossa Senhora das Neves (hoje, João Pessoa), em 1606; e em 1630 se alistara nas tropas do capitão-mor Matias de Albuquerque, em guerra contra os invasores flamengos. Cinco anos depois ele acompanhara a grande retirada de oito mil pernambucanos para o sul, decretada por Matias; deixando para trás, inclusive, a sua amada, a bela Ana Paes. E estabelecera-se na Bahia, onde se tornara um perigoso “campanhista”, comandando uma das tropas que faziam “entradas” e “correrias” em Pernambuco.
Vidal e outros capitães como Felipe Camarão, Henrique Dias, Francisco Rebelo e Paulo Souto Maior, abriam caminho através de matas virgens à frente de pequenos grupos de homens, tendo apenas “o ombro e a mochila como alforje e carruagem”. Movimentando-se sem parar, eles atacavam de surpresa, pondo fogo em engenhos e canaviais, confiscando gado e escravos, e prejudicando seriamente a produção de açúcar no território sob controle da Companhia das Índias.
Mas, além de campanhista, André também assumira, na Bahia, o papel de líder político. E chegara a peitar, inclusive, o próprio D. João IV, que estava numa situação delicadíssima após conduzir, em 1640, a libertação do seu reino da dominação espanhola, iniciada em 1580.
O POLÍTICO
O fato é que a maioria das nações católicas europeias, metidas, ao lado da Espanha, numa guerra contra as nações protestantes que já durava quase trinta anos, tardava em reconhecer a independência de Portugal. O irmão do rei, D. Diniz, preso numa masmorra castelhana, escrevia cartas e mais cartas pedindo rapidez num armistício que lhe devolvesse a liberdade. A esquadra flamenga, fundeada na boca do rio Tejo, a pretexto de defender Lisboa de um ataque espanhol, poderia facilmente bloquear a capital portuguesa. E D. João, coitado, preocupado em manter a coroa na cabeça, vacilava em apoiar os pernambucanos rebeldes, com medo de desagradar à poderosa Holanda, que lhe dava suporte.
Na corte, aliás, havia muitos defensores da tese de que Pernambuco deveria ser entregue de uma vez em troca de apoio político, militar, e de alguma prata. Entre eles, o respeitadíssimo padre Antônio Vieira, uma figura impressionante, talvez o maior orador em língua portuguesa de todos os tempos.
Mas, se não ousava afrontar abertamente a Holanda, o rei também não reprimia os rebeldes. Aqui acolá, até lhes dava uma mãozinha. Em agosto de 1644, por exemplo, André chegara ao Recife portando uma carta de D. João e outra do governador da Bahia, pedindo ao governo local que lhe desse salvo-conduto para visitar amigos e parentes.
“André Vidal apareceu aqui sob o frágil pretexto de dizer adeus ao velho pai, um pobre carpinteiro da Paraíba, a quem ele estava tão ansioso para rever quanto estaria eu de ver o rei do Congo”, escrevera, então, um conselheiro holandês, num relatório para Companhia. Mas a autorização fora dada e usada pelo paraibano para fazer diversas reuniões com proprietários locais. Dez meses depois começara o levante.
Uma guerra longa e uma difícil disputa interna
Em julho de 1645, André Vidal retornara da Bahia com suas tropas, ao lado de Henrique Dias, Felipe Camarão e Martim Moreno. E, juntamente com as milícias chefiadas por João Fernandes Vieira, em três meses eles encurralaram os flamengos no Recife e em Itamaracá. Ao mesmo tempo, começara a disputa entre ele, líder dos “baianos”, e João Vieira, representando os “pernambucanos”. Principalmente, em função da delicada questão dos engenhos abandonados, anos atrás, pelos emigrados de Pernambuco, no êxodo comandando por Matias e Albuquerque. As propriedades que estavam em mãos de holandeses e judeus foram logo devolvidas aos antigos donos. Mas o que fazer com as outras, legalmente adquiridos por luso-brasileiros, como o próprio João Vieira? Essa pendenga duraria décadas.
A guerra contra os holandeses, por sua vez, também se tornou uma questão demorada e complexa. Porque, se os brasileiros dominavam o interior do País, o Atlântico era território inimigo. Pelo mar, os sitiados continuavam a ser abastecidos. E, mesmo passando muita fome e penando com várias doenças, por falta de frutas e verduras frescas, eles não se entregavam. Esta situação perdurou até a Inglaterra – dona, também, de uma marinha poderosa – declarar guerra aos Países Baixos, em 1652, e prejudicar a navegação flamenga.
Foi André Vidal que teve a honra de levar a D. João IV a notícia da capitulação, ocorrida em janeiro de 1654; ganhando, como prêmio, o governo do Maranhão. E lá estava ele, em 1655, quando recebeu o maior elogio da sua vida, considerando-se que partiu do padre Antônio Vieira – que até pouco tempo, inclusive, era seu adversário político.
“Tem Vossa Majestade mui poucos nos seus reinos como André Vidal” o padre escreveu ao rei. “Eu o conhecia mais de fama que de vista (…) e digo a V. M. que ele está perdido no Maranhão, e que não estivera a Índia perdida se V. M. lha entregara”. Talvez por conta disso, o paraibano foi escolhido para governar Pernambuco, entre 1657 e 1661. Depois, comandou Angola, entre 1661 e 1666. E, novamente, Pernambuco, em 1667. Ao passo que João Fernandes Vieira jamais esteve à frente desta capitania.
André Vidal morreu em Goiana, no ano de 1680. E é outro, entre os restauradores, a ter seu nome inscrito no “Livro dos Heróis da Pátria”, em Brasília.
Peitando o rei
“Quando Vossa Majestade quiser castigar meu atrevimento em fazer guerra aos holandeses, havendo o senhor dito que os tratássemos com paz e amizade, eu pagarei meu erro, se julgar que errei”, assim André Vidal escreveu a D. João IV, que vacilava em apoiar os pernambucanos rebeldes. “E quando V. M. não se der por bem servido de mim, me despeça. Não faltará um príncipe cristão sob cuja bandeira eu arrisque minha vida e derrame meu sangue”. E ainda: “Com o encarecimento dos aflitos, mas não dos medrosos, pedimos à V. M. que nos acuda, com tal brevidade que não nos obrigue a buscar em outro príncipe católico o que de V. M. esperamos”.
Os “valentões” e o “Judas do Brasil”
O padre Antônio Vieira tinha grande influência sobre o rei e mais ainda sobre a rainha, D. Luiza. E defendia a entrega de Pernambuco aos flamengos, em troca de apoio contra os espanhóis. Ele costumava inquirir: “Se Portugal e Espanha, juntos, não puderam resistir à Holanda, como há de Portugal resistir, sozinho, à Holanda e Espanha?”. Alguns patriotas lisboetas, porém, apelidados de “valentões”, chamavam-no de “Judas do Brasil”. E diziam que, sem a posse daquele país, D. João não seria rei de nada.