Comunista, fundador do Partido, no Brasil, ele era tão digno e honrado que foi chamado até de santo
O teatro de Teatro de Santa Isabel lotou no dia 1º de maio de 1933. Todas as dependências foram tomadas pelo público que ocupou, ainda, boa parte da Praça da República, em frente ao Palácio do Governo. Mas daquela vez não estavam ali os senhores e as senhoras “distintos” e “de bem” da sociedade recifense, como de costume. Eram todos simples trabalhadores que, entre eufóricos e perplexos, viam outros iguais a eles subirem pela primeira vez ao palco do prédio suntuoso, erguido há 90 anos pelo Barão da Boa Vista.
Vivia-se um momento histórico. Dali a dois dias haveria eleições para deputados à Assembleia Nacional Constituinte, convocadas pelo governo provisório formado após a Revolução de 1930, com Getúlio Vargas à cabeça. E os comunistas de Pernambuco apresentavam sua chapa, composta por Cristiano Cordeiro (funcionário público), Antônio Camillo (gráfico), José Atanázio (ferroviário) e José Clodoaldo (eletricitário). Intitulada Trabalhador Ocupa teu Posto, ela concorria através da legenda União Operária e Camponesa, já que o Tribunal Eleitoral vetara o registro do Partido Comunista, alegando que essa agremiação recebia ordens de Moscou. E o orador principal foi Cristiano…
SEM ILUSÕES
“Não temos ilusões sobre a futura constituinte”, disse ele. “A grande maioria do povo trabalhador brasileiro não estará nela representada. Será antes uma assembleia de senhores de terras, de ricaços conservadores e intolerantes, de fazendeiros e usineiros reacionários, de juristas retrógrados, padres e altas patentes militares, todos exaltados defensores do capitalismo e inimigos não menos extremados do operariado independente”.
Mesmo assim, apresentou o programa que lá defenderiam, a começar por uma legislação que garantisse alguns direitos aos trabalhadores, coisa que ainda não havia, e educação pública e gratuita para todos, além de propostas avançadas como a defesa do divórcio, dos negros e dos indígenas. E concluiu: “Não. Os operários não irão discutir jurisprudência com os juristas da burguesia, teologia com os padres, táticas de guerra com os militares. Mas irão dizer aos doutores da lei que a questão social não é uma simples questão de polícia; aos padres, que a fome e o desemprego não se resolvem com rezas; e aos soldados que as metralhadoras podem, por instantes, dissolver as massas em desespero, mas não lhes aniquilam o ânimo de lutar pelo direito à vida e à liberdade”.
Dois dias depois, ele foi um dos candidatos que recebeu mais votos, cerca de três mil. Mas não se elegeu porque o interventor Agamenon Magalhães, então governando o Estado, mandou impugnar as urnas na quais ele se saiu melhor, impedindo-a de atingir o coeficiente mínimo.
Cristiano, porém, seguiu militando pelas causas que acreditava, nas décadas seguintes, com tanta grandeza que seria chamado até de “santo”, pelo povo, e de “lenda do Nordeste”, pela escritora Rachel de Queiroz.
LÍDER RESPEITADO
Cristiano Coutinho Cordeiro nasceu em 1895, em Limoeiro, Pernambuco, e ingressou na Faculdade de Direito do Recife em 1913, bacharelando-se em 1917. Ainda estudante, tornou-se funcionário do Tesouro do Estado e começou a participar de movimentos trabalhistas. A primeira ação da qual participou, e que ele nunca esqueceu, foi uma passeata das empregadas das fábricas de cigarros, conhecidas como “cigarreiras”, durante uma greve.
O Recife, então, fervia com as manifestações dos trabalhadores. E a cabeça de Cristiano também, com as idéias transmitidas pelo professor Joaquim Pimenta e por líderes operários espanhóis e portugueses, tal como o estucador José dos Santos, que lhe emprestou livros sobre anarquismo. Mas o entusiasmo causado pelo triunfo da Revolução Comunista de 1917, na Rússia, levou o jovem idealista a se juntar a um grupo que estudava a doutrina de Marx e Engels, e a logo despontar como a maior liderança da esquerda pernambucana.
Em 1919, Cristiano foi encarregado de editar um número especial do jornal Tribuna do Povo, dedicado à greve geral ocorrida no Recife. Em 1921, passou a dirigir A Hora Social, órgão da Federação dos Trabalhadores de Pernambuco, cuja redação e oficinas funcionavam na Praça do Carmo. E, em 1922, com Astrogildo Pereira e outros sete camaradas, fundou o Partido Comunista do Brasil, num congresso realizado em Niterói, no Rio de Janeiro.
De volta ao Recife, passou a dirigir o Comitê Regional do PCB, que não tinha mais de cem de filiados, mas possuía um grande número de simpatizantes, tais como o engenheiro e poeta Joaquim Cardozo e o intelectual e político Aderbal Jurema. Cristiano, contudo, nunca foi um fiel seguidor do “centralismo democrático”, ou seja, não obedecia cegamente às diretrizes do Comitê Central, como era exigido dos militantes comunistas.
Três vezes eleito e impedido de assumir
Em 1926, por exemplo, ele apoiou o esforço mal-sucedido do tenente Cleto Campelo em promover um levante popular no Recife, quando a Coluna Prestes entrou no Estado, sendo preso por isso. Já o PCB, nacionalmente, considerava aquele movimento militar contra o governo do presidente Artur Bernardes uma iniciativa pequeno-burguesa, sem vínculo com a classe operária. Em 1933, Cristiano concorreu à Constituinte, também contra a orientação de boicotar aquela eleição, dada pelo Partido. E ficou contra o levante promovido pela Aliança Libertadora Nacional, em 1935, encabeçado pelos comunistas, por julgá-lo “uma quartelada inoportuna”. Mas possuía tanta liderança e autoridade moral que seus camaradas pernambucanos o seguiam.
Como relatou um observador enviado pela direção nacional do PCB: “Em Pernambuco há um fenômeno novo no Partido Comunista: o cristianismo”.
Em 1935, Cristiano foi eleito vereador do Recife. Sozinho, teve mais votos do que os dezessete candidatos integralistas, de direita, “puxando” com ele, ainda, o gráfico Chagas Ribeiro e o comerciário João Bezerra. Mas, de novo, não pôde tomar posse. Devido ao levante da Aliança Libertadora, ocorrido naquele ano foi outra vez preso e recolhido à Casa de Detenção, além de demitido do emprego no Estado.
Só em 1937 ele pôde assumir o cargo, enfrentando manifestações de integralistas que queriam impedi-lo, pela força. Mas nunca seria um parlamentar. A Câmara Municipal foi logo fechada pelo golpe que implantou o Estado Novo, e Cristiano se viu obrigado a deixar o Recife. Por dez anos viveu em Santos, Goiânia, Petrópolis e no Rio de Janeiro, dando aulas em colégios e faculdades e trabalhando em jornais. E em 1947 foi expulso do Partido Comunista, devido à sua rebeldia.
Em 1948, Cristiano voltou ao Recife e reassumiu seu cargo de funcionário público, lotado no Arquivo Público Estadual, até se aposentar. Mas em 1961 voltou trabalhar, desta vez na Sudene, sob o comando de Celso Furtado, onde ficou até 1975. E morreu aos 92 anos de idade, em 1987, no seu querido Recife, onde virou nome de rua.
Esquerda em Pernambuco
Na virada no século XVIII para o XIX, o monsenhor Arruda Câmara já propunha um Brasil independente e igualitário, sem “a aristocracia cabundá e acanalhada, que sempre iria por fúteis obstáculos aos avanços”. Frei Caneca, líder da Confederação do Equador (1824), foi outro pensador radical; assim como o mulato Antônio Pedro de Figueiredo, editor da revista O Progresso, e Borges da Fonseca, também jornalista, nos tempos da Praieira (1848). Em 1851, o general Abreu e Lima publicou seu tratado O Socialismo. E nas duas primeiras décadas do século XX o maior agitador era o professor de Direito Joaquim Pimenta, sucedido por Cristiano Cordeiro.
Na virada do século XX
A abolição da escravatura, em 1888, apressou o fim dos engenhos e o surgimento das usinas, que empregavam trabalhadores assalariados. Também cresceu o número de curtumes, fiações, tecelagens e fábricas de doces, cigarros e óleos vegetais. Em 1920, havia 113 estabelecimentos industriais em Pernambuco, mas a população do Recife — cerca de 240 mil pessoas, naquele ano —, mais que dobrara em duas décadas, com multidões de miseráveis vindas do campo. Com tanta mão de obra excedente e sem leis que regulassem as relações trabalhistas, a terrível exploração causou uma sucessão de protestos — inclusive uma greve geral, em 1919 —, todos reprimidos com extrema violência.