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Miguel Arraes, um homem que se tornou um mito

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Ele governou Pernambuco três vezes e foi um dos grandes líderes políticos brasileiros do século vinte

Uma cena presenciada na infância, no sertão do Ceará, ficou para sempre na sua memória: um grupo de flagelados da seca presos num curral, como se fossem bichos, para que, tangidos pela fome, não pudessem migrar para a capital, Fortaleza. “Era um horror difícil de compreender e marcou meu jeito de ver as coisas”, ele diria, adiante.

Na juventude, mudou-se para Pernambuco e tornou-se um político muito popular, um líder carismático que empolgava multidões, mesmo falando com péssima dicção. E, também, um governante competente, visto como forte candidato à Presidência da República. Seu “jeito de ver as coisas” — ou seja, o desejo de tirar da miséria a maioria do povo brasileiro —, contudo, o pôs em choque com as poderosas forças do conservadorismo, levando-o à prisão e ao exílio. Mas também fez dele uma figura legendária…

TRADIÇÃO FAMILIAR

Miguel Arraes de Alencar nasceu em Araripe, no Ceará, em 1916, filho dos produtores rurais José Almino de Alencar e Maria Benigna Arraes de Alencar, e entre seus antepassados estava a pernambucana Bárbara de Alencar, que liderou a Revolução de 1817, no Crato, ao lado dos filhos: Tristão Araripe, que também comandou a Confederação do Equador no Ceará, em 1824, e José Martiniano, depois senador do Império e pai do escritor José de Alencar.

Aos dezessete anos ele veio pra o Recife, matriculou-se na Faculdade de Direito e passou num concurso para escriturário do Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), ascendendo na hierarquia daquele órgão até o posto de delegado regional, em 1943. Nesse entretempo, casou-se com Célia de Sousa Leão, com quem teve oito filhos, e em 1948 assumiu a Secretaria de Fazenda de Pernambuco, a convite do governador Barbosa Lima.

Em 1958, Arraes estreou na política disputando uma cadeira de deputado estadual, sem sucesso. Em 1960, porém, uma coligação formada pelo PSB, PST e dissidentes do PSD o lançou candidato à Prefeitura do Recife, com apoio do prefeito Pelópidas Silveira, muito popular, do governador Cid Sampaio e da Frente do Recife, que reunia sindicatos, associações de bairro, setores progressistas da Igreja e o clandestino Partido Comunista Brasileiro (PCB). E ele venceu, com 83 mil votos (54% do total).

NO GOVERNO

Como prefeito, Arraes deu seguimento à gestão de Pelópidas e foi além, conseguindo aprovar um código de obras municipal e pondo em circulação os novos ônibus elétricos, além de apoiar a criação do Movimento de Cultura Popular, formado por artistas, intelectuais e estudantes, que realizou um extraordinário trabalho educativo junto à população carente.

Em 1961, sua esposa, Célia, faleceu. E em 1962, além de casar-se em segundas núpcias com Maria Magdalena Fiúza, com quem teria mais dois filhos, ele já foi lançado candidato ao governo de Pernambuco pelo Partido Social Trabalhista (PST), de novo com apoio da Frente do Recife. E com 48% dos votos — na época, não havia segundo turno —, derrotou João Cleofas, da UDN, representante das velhas oligarquias canavieiras.

À frente do Estado, Arraes fez outra grande gestão, especialmente para os trabalhadores rurais, que passaram a receber salário mínimo e outros direitos através do “Acordo do Campo”, firmado com usineiros e donos de engenho da Zona da Mata. Mas também deu muita atenção à ciência e à tecnologia criando, por exemplo, o Laboratório Farmacêutico de Pernambuco (Lafepe), para produzir medicamentos a baixo custo. Seu nome, então, passou a ser cotado para disputar a sucessão do presidente João Goulart nas eleições de 1965, tendo como concorrente, no campo da forças progressistas, apenas o governador Leonel Brizola, do Rio Grande do Sul.

O golpe militar de 1964, porém, interrompeu as trajetórias dos dois.

No dia 1º de abril daquele ano, tropas do IV Exército cercaram o Palácio das Princesas e Arraes foi intimado a renunciar ao cargo. Senão, seria preso. Mas ele recusou, “para não trair a vontade dos que o elegeram”, e foi trancafiado no 14º Regimento de Infantaria do Recife, depois em Fernando de Noronha. E estava na Fortaleza de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, quando foi libertado provisoriamente, em maio de 1965, por meio de um habeas corpus, e partiu para o exílio na Argélia.

Sua fama, entretanto, só cresceu, durante os quinze anos em que esteve fora, com a gente pobre do campo rezando pela volta do “Pai Arraia”. E ele retornou, após a Anistia, em 1979, como um verdadeiro mito, sendo recebido por cinquenta mil pernambucanos num grande comício, realizado no Recife.

Arraes filiou-se, então, ao MDB — um dos dois únicos partidos permitidos pelo regime militar, de oposição e adversário da Arena, apoiadora do governo —, mas não pôde candidatar-se novamente ao governo de Pernambuco, como gostaria.

Na sua ausência, outras lideranças regionais surgiram e cresceram na luta contra a ditadura, como Marcos Freire e Jarbas Vasconcelos. E Marcos conseguiu a indicação do PMDB (ex-MDB), com apoio de Jarbas, em 1982, nas primeiras eleições diretas para os governos estaduais que ocorreram no País, em vinte anos. Mas perdeu a disputa para Roberto Magalhães, da Arena, enquanto Arraes elegeu-se deputado federal.

Com um olho na miséria e outro na tecnologia

Nas eleições de 1986, porém, com o país já redemocratizado, o mito voltou ao Palácio das Princesas “entrando pela porta que saiu”, como dizia seu jingle de campanha — ou seja, a porta da frente, através do voto popular. Pelo PMDB, ele derrotou o candidato do PFL (ex-Arena), José Múcio Monteiro, e, novamente, deu grande atenção aos pequenos agricultores por meio de programas como “Vaca na Corda”, que financiava a compra de uma vaca, e “Chapéu de Palha”, que empregava canavieiros em obras públicas, na entressafra da cana. Mas ocupou-se, também, da eletrificação rural e criou a primeira Secretaria de Ciência e Tecnologia do Nordeste, assim como a Fundação de Amparo à Ciência do Estado (Facepe).

Ao deixar o cargo, em 1990, Arraes filou-se ao Partido Socialista Brasileiro (PSB) e por essa legenda tornou-se governador pela terceira vez, em 1994, aos 78 anos. Interessado, como sempre, em ciência e tecnologia, ele implantou um sistema que dava acesso à Internet aos municípios do interior, criou um parque de eletro-eletrônica (Parqtel), um programa de incentivo a essa área (Peditec), e uma biofábrica de açúcar em Itapirema. Mas enfrentou uma grave crise financeira no Estado, e a oposição do seu partido ao então presidente Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, também não o ajudou em nada. Em consequência, não conseguiu se reeleger governador, em 1998, perdendo para seu ex-aliado e ex-prefeito do Recife, Jarbas Vasconcelos, do PMDB, que obteve mais de 64% dos votos.

Em 2002, o mito venceu sua última eleição, para deputado federal, pelo PSB. E com o seu partido passou a integrar a base de apoio do presidente Lula, do PT, tendo seu neto e herdeiro político, Eduardo Campos, como ministro da Ciência e Tecnologia. Em junho de 2005, porém, ele foi hospitalizado com suspeita de dengue, a partir daí surgindo uma série de complicações que o levaram à morte, aos 89 anos.

Miguel Arraes dá nome, hoje, a diversas ruas e avenidas em todo o Brasil, e a um hospital, em Pernambuco. E no ano do seu centenário foi homenageado pela Escola de Samba Unidos de Vila Isabel, do Rio de Janeiro, que fez dele seu enredo, no carnaval de 2016.

O MCP

O Movimento de Cultura Popular chegou a contar, entre 1960 e 1964, com cerca de 200 escolas, 450 professores e 20 mil alunos, oferecendo cursos de alfabetização, artes e artesanato. Com apoio de educadores como Paulo Freire e artistas como Ariano Suassuna, Francisco Brennand, Hermilo Borba Filho e Abelardo da Hora, entre outros, inspirou ações semelhantes em vários estados. No dia 1º de abril de 1964, porém, dois tanques de guerra se posicionaram em frente à sua sede, no Sítio da Trindade — local onde estivera o Arraial do Bom Jesus, quartel-general da resistência contra os invasores holandeses, entre 1630 e 1635. Toda a sua documentação foi, então, queimada; obras de artes foram destruídas; e os seus funcionários, demitidos.

Paulo Freire (1921/1997)

Este educador recifense, cujo trabalho despontou no MCP, desenvolveu o que se tornou mundialmente conhecido como “Método Paulo Freire”, unindo educação e formação da consciência política, e com o aluno construindo seu próprio aprendizado, em vez de seguir um caminho pré-estabelecido. Inicialmente só usado na alfabetização, esse método logo se estendeu para outras áreas, e seu criador, também exilado após o golpe de 1964, recebeu 29 títulos de doutor honoris causa de universidades europeias e americanas, ganhou o prêmio “Educação para a Paz” da Unesco, em 1986, e em 2012 foi declarado Patrono da Educação Brasileira.


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