O temido cangaceiro Lampião teve seu momento de glória em Juazeiro do Norte, Ceará, no ano de 1926. Ele foi festejado, tirou fotos, deu entrevistas e autógrafos, e havia um bom motivo para isso. Quem até então era pintado pelos jornais de todo o País como um monstro, um bandoleiro perverso que aterrorizava os sertões, tornara-se do dia para a noite um precioso aliado do governo federal.
O fato é que a 1ª Divisão Revolucionária — depois chamada de Coluna Prestes —, que percorria o Brasil tentando levantar o povo contra o presidente Artur Bernardes, chegara ao Nordeste. E Lampião fora convocado para combatê-la por ninguém menos que o padre Cícero Romão Batista, pelo qual, como bom sertanejo, tinha muito respeito e devoção.
Na verdade, quem intermediara o negócio com o governo federal, por muitos contos de réis, fora o deputado Floro Bartolomeu, o chefe político local. Dele, Lampião recebeu fardas, armamento e a patente de capitão. E, aconselhado pelo Padim Ciço, prometeu largar o cangaço ao fim daquela empreitada.
Mas não chegou a enfrentar a Coluna. Quando votou a Pernambuco, foi atacado pela polícia e retomou a vida bandida até seu trágico final, doze anos depois…
SEM ESCOLHA
Virgulino Ferreira da Silva nasceu em 1897, em Vila Bela, atual Serra Talhada, no sertão pernambucano. E sua saga principiou, como outros tantos dramas sertanejos, com uma mera disputa entre vizinhos.
Em 1916, o fazendeiro José Saturnino acusou os jovens irmãos Antônio, Levino e Virgulino Ferreira de roubo de cabras. Se ele tinha razão, não se sabe; mas sabe-se que, tentando evitar um conflito maior, o pai dos três, José Ferreira, um pequeno criador de gado calmo e pacífico, vendeu o que tinha e mudou-se para o povoado de Nazaré do Pico, no município de Floresta.
Saturnino, porém, quebrou o acordo de não ir até Nazaré, sendo lá recebido à bala por Virgulino. E a guerra começou, com ataques de parte a parte, até José Ferreira ser morto pelo tenente José Lucena, aliado de Saturnino, em 1920. Aí, os rapazes entraram de vez no cangaço, no bando de Sinhô Pereira.
Cangaceiros havia no Nordeste desde o século XVIII, quando surgiu a lendária figura do Cabeleira, enforcado em 1776. O século XIX foi marcado por Jesuíno Brilhante, e no século XX surgiu Antônio Silvino, morto em 1914. Mas esse fenômeno social ganhou uma grande projeção no Brasil através da imprensa, com Lampião, dos anos 20 aos 40.
O cangaço tinha “pai” e “mãe”. O pai era o “coronelismo” vigente desde sempre no interior do país, onde os grandes proprietários agiam como senhores feudais, sem nenhum respeito à lei, mantendo cada qual sua milícia de jagunços e em luta uns com os outros por mais terras e poder. E a mãe era a secular cultura sertaneja da violência, na qual a “honra” era o maior de todos os valores e matava-se por qualquer pequena desavença.
Os irmãos Ferreira, vivendo naquele mundo, não tiveram muita escolha.
VIDA BANDIDA
Com Sinhô, Virgulino ganhou seu nome de guerra por ser capaz de atirar repetidamente até o cano do seu fuzil encandecer e brilhar, à noite. Também aprendeu as artes do sequestro, da extorsão, da agiotagem e das negociatas com políticos e policiais corruptos. E quando Sinhô largou o banditismo e mudou-se para Goiás em 1922, ele herdou a chefia do bando.
Nos anos seguintes ele percorreu o Nordeste — exceto o Piauí e o Maranhão — a pé e a cavalo, atacando fazendas, vilas e cidades, ou sendo nelas “acoitado” de acordo as circunstâncias locais. Lampião foi responsável pela morte de mais de mil pessoas, pelo roubo de mais de cinco mil cabeças de gado, pelo estupro mais de duzentas mulheres e travou centenas de combates com os “macacos” — os soldados que o perseguiam.Em 1924, por exemplo, ele entrou na cidade de Sousa, na Paraíba, e a saqueou inteira. Outras vezes, porém, foi repelido; como em 1927, quando atacou Mossoró, a segunda maior cidade do Rio Grande do Norte, e lá perdeu seu tenente Jararaca, baleado e enterrado ainda vivo.
Aqui acolá, como um Robin Hood brasileiro, ele tomava dos ricos para dar aos pobres. Em 1929, após invadir Quijingue, na Bahia, deu um baile público e distribuiu dinheiro para o povo. E tinha seus momentos de brandura. Em 1923, Lampião chegou de surpresa em Nazaré do Pico para impedir o casamento da sua prima e amor de infância, Maria Licor Ferreira, com um rapaz chamado Enoque Menezes. Mas deixou-se convencer pelo padre e foi embora em paz, com uma única ressalva: ninguém poderia dançar depois do casório!
As modernidades apressaram o fim do cangaço
Outro amor, porém, surgiu em 1930 quando o cangaceiro conheceu Maria Déia, casada com o sapateiro Zé de Neném, que fugiu com ele e, dois anos depois, lhe deu uma filha, Expedita Ferreira. Apelidada Maria Bonita, ela foi a primeira mulher a juntar-se ao bando, logo seguida por Inacinha, Lili, Sila, Adília e várias outras.
Numa época e numa região nas quais o gênero feminino era extremamente discriminado, no cangaço elas se relacionavam de igual para igual com os homens e participavam de tudo. Ana do Bonfim, por exemplo, era famosa pelo uso da faca peixeira e Dadá, companheira de Corisco, pariu um filho em meio a um tiroteio, em 1931.
A chegada, aos poucos, de modernidades como o rádio, que melhorou as comunicações, e a abertura de estradas, que permitiam o rápido transporte de tropas em caminhões, contudo, anunciavam que o tempo do cangaço estava acabando.
Na noite de 27 de julho de 1938, Lampião acampou com seu bando em Angicos, Sergipe, num esconderijo tido como bastante seguro. Mas foi traído, até hoje não se sabe por quem; e como chovia muito os cães não perceberam a aproximação da “volante” do tenente João Bezerra. Na madrugada do dia seguinte, quando os cangaceiros saíam das barracas para rezar o ofício, antes de tomar café — um ritual estabelecido pelo chefe, que era muito religioso — as metralhadoras começaram a cuspir fogo, sem lhes dar chance de defesa. Apenas Corisco e alguns outros conseguiram escapar.
As cabeças de Lampião, Maria Bonita e de uma dúzia de “cabras” foram então decepadas, salgadas e guardadas em latas com aguardente e cal. E João Bezerra percorreu vários estados nordestinos exibindo-as, atraindo multidões por onde passava.
Após esse tour macabro, elas seguiram para o IML de Aracaju e depois para a UFBA, em Salvador, onde foram examinadas e constatou-se que eram perfeitamente normais, contrariando a teoria do cientista italiano Lombroso, então em voga, de que os crânios dos criminosos apresentariam anomalias patológicas. Mas ficaram expostas num museu até 1969, quando finalmente foram exumadas, após muita luta das famílias dos mortos.
A memória do Rei do Cangaço, porém, permanece viva até hoje, sendo ele objeto de inúmeros estudos, filmes, livros, exposições, debates etc.
O bandido social
O renomado historiador inglês Eric Hobsbawn criou uma famosa definição de “banditismo social”. Para ele, trata-se de uma forma primitiva de reação à opressão, que ocorre quando os oprimidos não têm consciência política. Esses bandidos seriam homens orgulhosos que, ao serem injustiçados, se recusariam a baixar a cabeça; que contariam com apoio de parte da população e por vezes assumiriam o papel de seu vingador ou defensor; e que lutariam contra os excessos do sistema, não contra o próprio sistema. Eles, enfim, não seriam revolucionários, mas reformistas que tentavam estabelecer limites para a ação dos poderosos. Um modelo que assenta muito bem em Lampião.
Olê, mulher rendeira
Esse antigo tema musical, bem conhecido nos sertões nordestinos, teve a sua versão mais popular composta por Lampião, segundo um dos seus biógrafos, o padre Frederico Bezerra Maciel. E Luís da Câmara Cascudo acrescenta que a letra homenageia Maria Jocosa Lopes, avó do cangaceiro, que fazia rendas, tornando-se o hino de guerra do bando. O assalto à cidade de Mossoró, por exemplo, teria acontecido com os atacantes cantando essa canção. Há também uma gravação feita por Volta Seca, um sobrevivente do grupo. E, incluída no premiado filme O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto, tornou-se conhecida no Brasil e no exterior