Ela foi “a mãe do povo” e ele, segundo Gilberto Freire, “o pernambucano mais amado pelas multidões”
Reza a lenda que muitos ex-escravos se suicidaram de tristeza, envenenando-se ou atirando-se no Capibaribe, quando sua “mãe”, dona Olegarinha, morreu de gripe, em 1898. E o enterro dela foi concorridíssimo. Mas no sepultamento do seu marido, em 1912, a comoção foi ainda maior. Cerca de oitenta mil pessoas — praticamente toda a população recifense adulta, na época — acompanharam o cortejo fúnebre que saiu da Câmara Municipal sob uma chuva de flores lançadas das janelas dos sobrados, com os sinos das igrejas dobrando tristemente. E dos oradores que discursaram no trajeto até o cemitério, foi João Barreto que melhor captou a essência do momento, dirigindo-se ao defunto para dizer: “és tu que arrastas o povo; porque o povo, hoje, és tu só”.
Foi a maior homenagem já prestada pelos pernambucanos a um conterrâneo. Mas José Mariano fez por merecê-la…
QUESTÃO RELIGIOSA
Filho de uma família ilustre, José Mariano Carneiro da Cunha nasceu no dia 8 de agosto de 1850 no Engenho Caxangá, município de Ribeirão, e caiu no mundo bem cedo. Com apenas 16 anos de idade ingressou na Faculdade de Direito do Recife, tendo como colegas de turma ninguém menos que Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Herculano Bandeira e Castro Alves. Aos 20, já estava formado. Aos 22, fundou o jornal A Província (diz-se que vendeu um engenho para financiá-lo). E aos 23 casou com sua prima Olegária Adelaide da Gama, com quem teve cinco filhos. Ela foi o grande amor da sua vida e sua companheira de todas as horas — principalmente, na luta pela libertação dos escravos.
Além de defender a causa abolicionista, A Província, ligada ao Partido Liberal, estreou batendo com força no ministério do Partido Conservador, que então dirigia o País, e no governador de Pernambuco, Francisco de Farias Lemos. De quebra, polemizava com o bispo de Olinda, D. Vital Maria de Oliveira, e com os padres jesuítas.
Extremamente retrógrados, esses “ultramontanos” (os atuais “fundamentalistas”) interditavam ordens religiosas da qual os maçons, como Mariano, faziam parte, e desafiavam o governo, interferindo nos negócios públicos. E ele, à frente de uma malta, chegou a interromper uma missa no Colégio dos Jesuítas, espancando o celebrante, e a promover um quebra-quebra no jornal A União, pertencente àqueles padres. (Em 1911, porém, já perto da morte, se declararia arrependido, atribuindo o feito ao “excesso de patriotismo”).
Essa pendenga, chamada de “Questão Religiosa” — que, aliás, estendia-se por todo o País —, só findou dois anos depois, com o bispo D. Vital sendo levado preso para o Rio de Janeiro.
CARREIRA VITORIOSA
Com tanta energia e disposição, rico, bonito, excelente orador e dono de jornal, José Mariano estava bem aparelhado para atuar na política. Mas isso não era tudo. Embora filho da aristocracia, ele também possuía o dom da comunicação com as massas, além de ser, de fato, um homem muito generoso. Era membro, por exemplo, do Clube do Cupim, que promovia fugas de escravos. E sua mulher o ajudava muitíssimo.
Segundo o historiador Câmara Cascudo, “dona Olegarinha foi a Nossa Senhora dos pobres, mãe, madrinha, enfermeira e advogada de quem a procurava”. E “os porões da sua casa no Poço da Panela fervilhavam de escravos escondidos que eram alimentados, vestidos e garantidos pelo coração do casal”.
Somando tudo isso, José Mariano jamais perdeu uma eleição. Em 1878, foi eleito deputado geral (federal) pelo Partido Liberal, reelegendo-se em 1881, 1884 e 1886. Então, no dia 13 de maio de 1888, a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, extinguindo, finalmente, o cativeiro no Brasil. Essa medida, porém, contrariou os interesses dos grandes proprietários rurais — especialmente os poderosos produtores de café de São Paulo — e a monarquia não tardou a receber o troco.
Um ano e meio depois, no dia 15 de novembro de 1889, os militares, com apoio dos cafeicultores, proclamaram a República — para desgosto de Mariano que, igualmente a outros grandes pernambucanos progressistas, defensores da abolição e da reforma agrária, como Abreu e Lima e Joaquim Nabuco, era partidário da monarquia.
Contudo, ao contrário de seu amigo Nabuco, que se retirou da política, Mariano foi em frente. Elegeu-se para a Assembleia Constituinte instalada no Rio de Janeiro, em 1890, e ajudou a escrever a nova carta do País, promulgada em fevereiro de 1891. Então, ainda naquele ano, houve as primeiras eleições para prefeitos no Brasil, e os recifenses o escolheram para o inédito posto, na sua cidade.
Só que ele ganhou, mas não levou.
Mesmo na prisão, o povo o elegeu outra vez
Ocorreu que, velho, doente, em meio a uma grave crise econômica e com a resistência monarquista promovendo distúrbios em todo o País, o marechal Deodoro da Fonseca, o primeiro presidente brasileiro, renunciou. E o vice, o também marechal Floriano Peixoto, assumiu com a incumbência de convocar eleições para o cargo, conforme mandava a Constituição.
Temeroso, porém, de que a recém-criada república, uma flor ainda em botão, não chegasse a desabrochar, Floriano recusou-se a passar a faixa adiante. Virou ditador e começou a reprimir sem pena seus opositores, ganhando por isso o apelido de “Marechal de Ferro”. E José Mariano, que ousou enfrentá-lo com a sua bravura e disposição de sempre, foi recolhido ao Forte do Brum e depois remetido para a prisão da Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro.
Em 1894, contudo, ele, mesmo encarcerado, sem poder fazer campanha, foi mais uma vez eleito deputado federal. Naquele mesmo ano, um pouco antes do fim do governo de Floriano, conseguiu um habeas corpus no Supremo Tribunal de Justiça. E em outubro foi recebido em festa no Recife, com todas as ruas embandeiradas e tomadas pela multidão do Cais do Porto até o Poço da Panela, onde ficava sua casa.
Em 1897, Mariano voltou a ser eleito deputado, agora pelo Partido Autonomista, que ajudou a fundar em Pernambuco. Mas retirou-se da política após a morte de dona Olegarinha, em 1898, cujos funerais e homenagens a ela prestadas pela população pernambucana ele não pôde assistir, porque estava no Rio de Janeiro. Então, começou a passar dificuldades financeiras até o presidente Rodrigues Alves nomeá-lo oficial do Registro de Títulos e lhe conceder um Cartório de Títulos e Documentos, na capital federal.
Em 1911, José Mariano teve uma recaída e voltou à política, elegendo-se deputado federal pelo Partido Republicano Conservador. Mas morreu no dia 8 de junho do ano seguinte, na capital federal, sendo trazido embalsamado para Pernambuco e causando aquela imensa comoção no seu enterro.
Em sua homenagem foi erigida uma estátua no Poço da Panela; seu nome foi dado a um cais na margem esquerda do rio Capibaribe, no centro do Recife; e a Câmara Municipal desta cidade intitulou-se “Casa de José Mariano”.
O Clube do Cupim
Criada no Recife, em 1884, esta sociedade secreta tinha sinais próprios, apelidos, senhas etc., como a maçonaria, mas não estatuto. Seu único fim era a libertação dos cativos. E sua última façanha, em abril de 1888, foi transportar pelo rio Capibaribe 119 escravos ocultos numa barcaça de capim, à noite, do casarão de José Mariano, no Poço da Panela, passando em frente à Chefatura de Polícia, na Rua da Aurora, até a Casa de Banhos. De lá os fugitivos foram embarcados em um navio que os levou para o Ceará, onde a abolição fora proclamada desde 1883.
Gilberto Freyre fala de Mariano
“Entre José Mariano e o povo do Recife houve sempre amor. Mas amor violento, um desses amores de estudante de família ilustre com moça pobre e de cor. Ele conheceu o triunfo de ser um político querido como nenhum, sem, entretanto, ter sido parasita da sua popularidade, gozando à custa da plebe vida azul nos salões e nos clubes elegantes. Conheceu outros triunfos: o de ter concorrido para a Abolição não só com discursos, nem apenas com o dinheiro das joias da mulher, mas preparando com suas próprias mãos de fidalgo as célebres fugas dos escravos, que deixavam Pernambuco para o Ceará em barcaças. E o triunfo, também, de ter sido eleito deputado estando todo o tempo da campanha eleitoral preso, longe dos olhos, mas não do coração da sua amada cidade.”