Dentre todos os governadores desta capitania nos tempos do Brasil Colônia, ele foi, sem dúvida, o pior, mas teve seu castigo
Um ferimento mal sarado incomodava o general Luís do Rego Barreto, em setembro de 1821. Dois meses atrás, ele se divertia com alguns amigos, à noite, apreciando o vai-e-vem das mulatinhas na Ponte da Boa Vista, quando um rapaz bem vestido se aproximou e lhe desfechou dois pistolaços à queima-roupa. Felizmente, para ele, um tiro se perdeu e o outro só lhe atingiu um braço. Infelizmente, a recuperação vinha sendo lenta e dolorosa, devido à incompetência dos médicos que o atendiam. E o que é pior, num momento extremamente difícil, com os pernambucanos rebelados e prestes a atacar o Recife, para derrubá-lo do posto.
Luís do Rego, porém — um soldado que ganhara fama de corajoso na Europa, nas guerras napoleônicas, e ainda se mantinha forte e ágil, apesar de cinquentão —, jamais fugira da luta. E não pretendia se deixar expulsar desta capitania, tal como outros governadores portugueses haviam sido expulsos, em tempos passados…
O TIRANO
“El Rei, nosso senhor, me mandou à testa dessa forte divisão militar para terror e destruição dos malvados”, o general já foi avisando ao desembarcar no Recife, em junho de 1817, à frente de três mil homens. Ele recebera do príncipe D. João a incumbência de esmagar a revolução que ali rebentara, no dia seis de março; mas, quando chegou, ela já estava derrotada. Então se dedicou a perseguir os vencidos, tornando-se “o simum abrasador, o vento do deserto que, na sua veloz carreira, tosta a face dos viajantes, quando não os fulmina de morte”, nas palavras de um pernambucano.
Luís do Rego ocupou essa terra como se fosse um país inimigo. Criou um tribunal militar para julgar patriotas — pacíficos homens de bem, na maioria — com ritos sumários; e logo enforcá-los; esquartejar seus corpos, que eram atados em caudas de cavalos e arrastados pelas ruas; e expor suas cabeças e mãos nas vias públicas. Profanou cadáveres, mandando arrancá-los dos túmulos. Permitiu que seus oficiais violassem abrigos religiosos e estuprassem as jovens e senhoras lá albergadas. Castigou os habitantes do povoado de Mimoso, mandando arrastar todos eles à força, para o Recife. Ordenou a destruição de outra povoação inteira, Rodeador de Bonito, que se ajuntara em torno de um pregador místico, o Mestre Quiou, fuzilando e queimando vivos seus habitantes. E contra todo esse despotismo o povo clamava por vingança; até que ela chegou, finalmente.
NOVOS TEMPOS
Os problemas de Rego começaram em outubro de 1820, quando se soube, no Recife, que na cidade do Porto, em Portugal, fora deflagrado um movimento constitucionalista. Sentindo-se abandonados por D. João VI, que se mudara para o Brasil em 1807; governados por um inglês, o marechal Beresford, o que era motivo de vergonha para eles; e em meio a uma grave crise econômica, os portugueses se rebelaram. Com apoio dos militares, foram convocadas as “Cortes”, uma assembléia de deputados que passou a exigir volta do rei para Lisboa; e que, doravante, o país tivesse uma constituição e Sua Majestade fosse obrigado a respeitar a lei, como todo mundo.
Logo, os patriotas pernambucanos sobreviventes da Revolução de 1817começaram a conspirar. E vários oficiais maçons do Batalhão Algarves, que vieram para cá sob o comando de Rego, meteram-se numa conjura visando derrubá-lo e implantar aqui uma junta provisória, submetida às Cortes.
O general reagiu com rapidez, prendendo vários suspeitos, mas perdeu a confiança na tropa. E ao saber que o Pará e a Bahia já haviam aderido ao movimento do Porto, trocou a farda por trajes civis e buscou uma saída política para permanecer no poder. Em março de 1821, convidou as autoridades locais a opinar sobre a grave crise política e manobrou para criar uma junta governativa, com ele mesmo à testa.
Então, em maio, soube-se que D. João VI havia jurado uma constituição, no Rio de Janeiro, e as Cortes haviam convocado eleições para deputados das províncias. Essas notícias foram festejadas no Recife por três dias, e Rego rapidamente organizou o processo eleitoral em Pernambuco. As Cortes, porém, viam nele um representante do antigo regime, e o povo o odiava. Para completar, dezenas de revolucionários de 1817 que ainda estavam presos, na Bahia, foram anistiados e voltaram como heróis.
Mesmo assim, o general conseguiu manter-se no governo até que, no dia 21 de julho, sofreu o atentado. Então, concluiu que precisava mostrar força, que tinha de contra-atacar, se quisesse sobreviver política e até fisicamente. Aí, cometeu um grave erro.
Os pernambucanos e as fogueiras de Bonito
Como não descobriu quem fizera os disparos — e, consequentemente, sem poder investigar se houvera cúmplices, nem quem eram eles —, Rego mandou prender arbitrariamente 55 pernambucanos ilustres. Na maioria, recém-anistiados, que haviam saído das masmorras de Salvador três meses atrás. E despachou 42 para Lisboa e 13 para Fernando de Noronha.
Mas o tiro lhe saiu pela culatra. Outros retornados criaram, então, um “governo constitucional temporário” pernambucano, com sede no distrito de Goiana, desconhecendo sua autoridade e declarando-se subordinados apenas às Cortes e ao rei.
Luís do Rego ainda tentou um acordo, propondo que elementos da junta de Goiana se unissem à sua. Os rebeldes, contudo, recusaram; e atacaram o Recife, em setembro.
Dono, porém, de larga experiência militar, e contando com um reforço de 350 homens vindos da Bahia, o general conseguiu conter o ímpeto daqueles bravos, mas improvisados guerreiros. Com o impasse nos combates, foram abertas negociações em Beberibe, onde se instalara o quartel-general rebelde. E após muitas tratativas chegou-se finalmente a um acerto, no dia cinco de outubro de 1821, que entrou para a história com o nome de “Convenção de Beberibe”.
Por esse acordo, os dois lados manteriam suas posições — Rego controlando o Recife e os rebeldes, o interior — até as Cortes e o rei darem a palavra final. E a decisão de Lisboa foi pela criação de uma junta de governo eleita pelos pernambucanos, que acabou sendo inteiramente composta por revolucionários de 1817, com Gervásio Pires na presidência.
Luís do Rego Barreto, então, foi embora, sem dar posse ao sucessor. E ainda viveu muitas peripécias em Portugal, envolvido nas disputas entre absolutistas e constitucionalistas, ao lado desses últimos, até morrer, em 1840, aos 77 anos de idade.
Pernambuco, por sua vez, com governantes nativos e democraticamente eleitos, de acordo com os padrões da época — só votavam homens brancos e de posses —, ficou autônomo, na prática, um ano antes das outras províncias. E, adiante, incorporou-se ao Império. Mas rebelou-se outra vez, em 1824, contra D. Pedro I, na chamada “Confederação do Equador”. E o imperador, tão português e tão autoritário quanto Luís do Rego, nos ameaçou, dizendo: “Pernambucanos, lembrai-vos das fogueiras de Bonito…”.
Adeus, senhores
Os pernambucanos nunca respeitaram os governadores portugueses. O primeiro a ser expulso daqui, em 1666, foi Jerônimo de Mendonça Furtado, apelidado de “Xumbregas” devido aos seus enormes bigodes, parecidos com os bigodes de um general holandês chamado Schömberg. E ainda o homenagearam criando o verbo “xumbregar”, significando fazer patifaria ou safadeza. O segundo banido foi Sebastião de Castro Caldas, ferido à bala numa emboscada, no início da Guerra dos Mascates, em 1710. O terceiro foi Caetano Pinto Montenegro, na Revolução de 1817. E o quarto foi Luis do Rego, em 1821. Houve boatos, também, de que Fernão Cabral, morto no exercício do mandato, em 1688, teria sido envenenado. E o Marquês de Montebelo, se não foi expulso, saiu daqui humilhado, em 1693.
Quem teria sido?
O rapaz que disparou contra Luis do Rego jogou-se no Capibaribe e desapareceu na escuridão. Dias depois seu cadáver foi encontrado, mas com o rosto tão comido pelos siris que não pôde ser reconhecido. O governador mandou, então, expô-lo em praça pública, e ofereceu a grossa recompensa um conto de réis, se fosse homem livre, ou a liberdade, se fosse escravo, para quem o identificasse. Mesmo assim, não apareceu ninguém para prestar esse serviço, tamanho era o ódio que os pernambucanos lhe votavam.