Ele plantou idéias avançadas numa terra inculta, formou dezenas de líderes e inspirou revoluções
Prestes a completar cinquenta anos de idade, em fevereiro de 1802, o monsenhor Arruda Câmara proibiu discípulos e amigos de celebrarem o seu natalício. O momento não era para festejos, com os irmãos Francisco de Paula e José Francisco Cavalcanti de Albuquerque presos no Forte de Cinco Pontas, acusados de conspirar contra Portugal. Mesmo sendo ricos e bem relacionados, os “Suassunas”, como eram apelidados, poderiam acabar na forca. E se a devassa conduzida pelo juiz Antônio Manoel Galvão avançasse de fato, o nome do próprio Arruda também apareceria, como mentor dos dois.
Na verdade, o monsenhor, um grande idealista, não temia pela vida. O que ele lamentava era os portugueses terem descoberto a trama que vinha sendo costurada em segredo pelos patriotas de Pernambuco e da Paraíba, havia anos, sob a sua orientação. E, consequentemente, a perda de muito trabalho em prol não só da independência do Brasil, como da libertação dos escravos e da melhoria de vida dos mais pobres. Mesmo se os Suassuna – e ele – escapassem do castigo, a revolução com a qual sonhava já fora atrasada por um bom tempo…
IDEIAS FRANCESAS
Nascido em Pombal, na Paraíba, Manoel entrara como noviço no convento dos carmelitas calçados de Goiana, em 1783. Depois fora estudar em Coimbra, de onde o expulsaram por ser liberal demais. Então, seguira para Montpellier, na França, onde se enfronhara nos mistérios da medicina, das ciências naturais e da política. E, tendo acompanhado de perto a Grande Revolução de 1789, voltara para o Brasil, três anos depois, com a cabeça cheia de sonhos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
Alertado, porém, pela experiência vivida em Portugal, ele tivera sabedoria e paciência para não se expor novamente, para não revelar seus sonhos a quem não devia, nessa terra de gente analfabeta, fanaticamente religiosa e regida pela mão de ferro da coroa portuguesa. Membro destacado da maçonaria, Manoel fundara o Areópago (reunião de homens ilustres, em grego) de Itambé. E, secretamente, nos intervalos das suas viagens pelos sertões nordestinos, onde estudava a natureza, e entre um livro e outro que escrevia, fora armando a sua teia com ajuda do seu principal acólito, o padre João Ribeiro Montenegro.
“Não quero o que já existe”, ele costumava dizer, “e toda demora é prejudicial”.
O SEMINÁRIO
O plantio de ideias progressistas iniciado pelo monsenhor também avançara muito com a chegada do bispo fluminense José Joaquim Azeredo Coutinho, em 1798. Não que os dois tivessem a mesma orientação política. Pelo contrário. Coutinho era um conservador, um homem do antigo regime. Mas, sendo membro emérito da Academia Real de Ciências, conhecido e reverenciado por todas as pessoas cultas do Brasil e de Portugal, autor de diversos tratados sobre pesca, indústria e agricultura traduzidos para vários idiomas, era um entusiasta da educação. E movera mundos e fundos para criar o Seminário de Nossa Senhora das Graças, em Olinda.
Seu objetivo com aquela instituição era, além de formar sacerdotes, preparar funcionários para trabalhar no comércio e no governo, homens bem esclarecidos e educados, dotados de mentalidade prática. E para ministrar as aulas mandara buscar excelentes professores em Lisboa, como Frei Laboreiro e Padre Miguelinho – estes, sim, apaixonados pelas “ideias francesas”, que passaram a difundir entre melhor juventude local.
Outro evento recente que impulsionara o trabalho de Arruda Câmara fora a chegada da cultura do algodão.
NOVOS TEMPOS
Ora, durante a infância e a juventude do futuro monsenhor, nada em sua terra fugia da rotina. Ano após ano, era tudo igual. E o único produto de exportação continuava sendo o açúcar, afora um pouco de pau-brasil, peles e ipepaconha, que quase não pesavam na balança comercial. Então, uma nova aurora despontara. A partir de 1776, as fábricas inglesas, que abasteciam o mundo de tecidos, viram-se de repente desprovidas da sua matéria prima, o algodão, devido à guerra de independência do seu fornecedor, os Estados Unidos, e foram buscá-la em outras paragens. Inclusive, o Brasil. E logo se vira por aqui que esse plantio poderia ser muito lucrativo, até porque, ao contrário do açúcar, não era preciso um alto investimento para começar a produzir.
Assim, um grande número de pequenos agricultores pôde entrar no mercado internacional, sem sair de casa. Os intermediários iam até as suas portas comprar o produto a um bom preço, transportando-o depois para o litoral, onde era descaroçado, prensado e embarcado. E essa nova cultura, surgida nos tempos modernos, das máquinas de pulmão de ferro que respiravam a força vapor, despertara a região da sua letargia prolongada.
Um dia, todos os americanos serão irmãos
Já virada dos oitocentos, o algodão empatava com o açúcar e a aguardente em volume de exportações, dando-se por certo que logo tomaria o primeiro posto. E o Recife, que já fora domínio dos “mascates” – os comerciantes portugueses, contra os quais os “nobres” pernambucanos, baseados em Olinda, haviam guerreado, em 1710 – também se abrasileirara. Centenas de artesãos e pequenos comerciantes, brancos, negros e pardos, foram se estabelecendo por lá, principalmente no bairro de Santo Antônio, deixando os lusos restritos ao velho bairro portuário. O norte da capitania também fervilhava, e na populosa vila de Goiana se implantara até uma manufatura de panos rústicos, coisa nunca vista por aqui.
Pois era com essa massa de trabalhadores livres que Arruda Câmara contava para fazer a revolução. A aliança com a aristocracia nativa – “cabundá”, acanalhada, na sua opinião – seria temporária. Só marchariam juntos até a independência de Portugal, “pois ela sempre iria por fúteis obstáculos a outros avanços”, como, por exemplo, a libertação dos escravos. E “a gente de cor também deveria ter ingresso na prosperidade do Brasil”.
Aliás, não só do Brasil, como da América inteira. Para o monsenhor, logo viria o tempo em que todos os americanos seriam irmãos. E seus projetos iam marchando bem até os Suassuna serem apanhados.
Por sorte – ou melhor, à custa de muito dinheiro e conchavos – os dois irmãos se safaram do castigo, após um ano de prisão no Forte de Cinco Pontas. E Arruda Câmara jamais foi acusado de nada. Ele continuou a fazer suas pesquisas e a trabalhar pela liberdade e pela democracia, até morrer, em 1811, após ter arrancado do príncipe D. João a permissão para criar o Jardim Botânico de Olinda. Mas sem chegar a ver o resultado do seu plantio, que brotou com toda força na Revolução de 1871, e fez desta província a vanguarda política do País durante toda a primeira metade do século XIX.
Em sua homenagem foi criado o Parque Arruda Câmara, em João Pessoa, na Paraíba, popularmente conhecido como “Bica”; e a Academia Paraibana de Letras o adotou como patrono de uma das cadeiras. Em Pernambuco, deveria ser mais reconhecido.
O Seminário
O Seminário de Olinda, criado pelo bispo Azeredo Coutinho, em 1800, como um viveiro de sacerdotes e de funcionários para o comércio e o governo, oferecia instrução secundária ao nível dos liceus franceses, como jamais houvera no País. Ensinava latim, grego, francês, retórica, poética, história universal, história sagrada, teologia dogmática e moral, lógica, metafísica, ética e cantochão, além de ciências como geografia, desenho, matemática e história natural. E formou, intelectual e politicamente, dezenas de importantes personagens da História do Brasil até ser fechado, na esteira da repressão à Revolução de 1817. Reaberto após a Independência, não recuperou a importância anterior.
Açúcar X algodão
A produção de açúcar não foi abandonada, apesar de muitos agricultores terem corrido para o algodão, bem mais lucrativo. Pelo contrário, ela seguiu crescendo, embora lentamente, na mata sul, chuvosa e com solo de massapé úmido, peguento, inimigo dos algodoeiros. O plantio de algodão, por sua vez, começou na mata seca, ao norte. Depois avançou sobre o “mimoso”, o agreste, com clima e terrenos propícios. Por fim, entrou pelo sertão, uma região muito pouco povoada onde até então só se criava gado.