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Channel: Pernambuco, História & Personagens

Cristiano Cordeiro, “a lenda do Nordeste”

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Comunista, fundador do Partido, no Brasil, ele era tão digno e honrado que foi chamado até de santo

O teatro de Teatro de Santa Isabel lotou no dia 1º de maio de 1933. Todas as dependências foram tomadas pelo público que ocupou, ainda, boa parte da Praça da República, em frente ao Palácio do Governo. Mas daquela vez não estavam ali os senhores e as senhoras “distintos” e “de bem” da sociedade recifense, como de costume. Eram todos simples trabalhadores que, entre eufóricos e perplexos, viam outros iguais a eles subirem pela primeira vez ao palco do prédio suntuoso, erguido há 90 anos pelo Barão da Boa Vista.

Vivia-se um momento histórico. Dali a dois dias haveria eleições para deputados à Assembleia Nacional Constituinte, convocadas pelo governo provisório formado após a Revolução de 1930, com Getúlio Vargas à cabeça. E os comunistas de Pernambuco apresentavam sua chapa, composta por Cristiano Cordeiro (funcionário público), Antônio Camillo (gráfico), José Atanázio (ferroviário) e José Clodoaldo (eletricitário). Intitulada Trabalhador Ocupa teu Posto, ela concorria através da legenda União Operária e Camponesa, já que o Tribunal Eleitoral vetara o registro do Partido Comunista, alegando que essa agremiação recebia ordens de Moscou. E o orador principal foi Cristiano…

SEM ILUSÕES

“Não temos ilusões sobre a futura constituinte”, disse ele. “A grande maioria do povo trabalhador brasileiro não estará nela representada. Será antes uma assembleia de senhores de terras, de ricaços conservadores e intolerantes, de fazendeiros e usineiros reacionários, de juristas retrógrados, padres e altas patentes militares, todos exaltados defensores do capitalismo e inimigos não menos extremados do operariado independente”.

Mesmo assim, apresentou o programa que lá defenderiam, a começar por uma legislação que garantisse alguns direitos aos trabalhadores, coisa que ainda não havia, e educação pública e gratuita para todos, além de propostas avançadas como a defesa do divórcio, dos negros e dos indígenas. E concluiu: “Não. Os operários não irão discutir jurisprudência com os juristas da burguesia, teologia com os padres, táticas de guerra com os militares. Mas irão dizer aos doutores da lei que a questão social não é uma simples questão de polícia; aos padres, que a fome e o desemprego não se resolvem com rezas; e aos soldados que as metralhadoras podem, por instantes, dissolver as massas em desespero, mas não lhes aniquilam o ânimo de lutar pelo direito à vida e à liberdade”.

Dois dias depois, ele foi um dos candidatos que recebeu mais votos, cerca de três mil. Mas não se elegeu porque o interventor Agamenon Magalhães, então governando o Estado, mandou impugnar as urnas na quais ele se saiu melhor, impedindo-a de atingir o coeficiente mínimo.

Cristiano, porém, seguiu militando pelas causas que acreditava, nas décadas seguintes, com tanta grandeza que seria chamado até de “santo”, pelo povo, e de “lenda do Nordeste”, pela escritora Rachel de Queiroz.

LÍDER RESPEITADO

Cristiano Coutinho Cordeiro nasceu em 1895, em Limoeiro, Pernambuco, e ingressou na Faculdade de Direito do Recife em 1913, bacharelando-se em 1917. Ainda estudante, tornou-se funcionário do Tesouro do Estado e começou a participar de movimentos trabalhistas. A primeira ação da qual participou, e que ele nunca esqueceu, foi uma passeata das empregadas das fábricas de cigarros, conhecidas como “cigarreiras”, durante uma greve.

O Recife, então, fervia com as manifestações dos trabalhadores. E a cabeça de Cristiano também, com as idéias transmitidas pelo professor Joaquim Pimenta e por líderes operários espanhóis e portugueses, tal como o estucador José dos Santos, que lhe emprestou livros sobre anarquismo. Mas o entusiasmo causado pelo triunfo da Revolução Comunista de 1917, na Rússia, levou o jovem idealista a se juntar a um grupo que estudava a doutrina de Marx e Engels, e a logo despontar como a maior liderança da esquerda pernambucana.

Em 1919, Cristiano foi encarregado de editar um número especial do jornal Tribuna do Povo, dedicado à greve geral ocorrida no Recife. Em 1921, passou a dirigir A Hora Social, órgão da Federação dos Trabalhadores de Pernambuco, cuja redação e oficinas funcionavam na Praça do Carmo. E, em 1922, com Astrogildo Pereira e outros sete camaradas, fundou o Partido Comunista do Brasil, num congresso realizado em Niterói, no Rio de Janeiro.

De volta ao Recife, passou a dirigir o Comitê Regional do PCB, que não tinha mais de cem de filiados, mas possuía um grande número de simpatizantes, tais como o engenheiro e poeta Joaquim Cardozo e o intelectual e político Aderbal Jurema. Cristiano, contudo, nunca foi um fiel seguidor do “centralismo democrático”, ou seja, não obedecia cegamente às diretrizes do Comitê Central, como era exigido dos militantes comunistas.

Três vezes eleito e impedido de assumir

Em 1926, por exemplo, ele apoiou o esforço mal-sucedido do tenente Cleto Campelo em promover um levante popular no Recife, quando a Coluna Prestes entrou no Estado, sendo preso por isso. Já o PCB, nacionalmente, considerava aquele movimento militar contra o governo do presidente Artur Bernardes uma iniciativa pequeno-burguesa, sem vínculo com a classe operária. Em 1933, Cristiano concorreu à Constituinte, também contra a orientação de boicotar aquela eleição, dada pelo Partido. E ficou contra o levante promovido pela Aliança Libertadora Nacional, em 1935, encabeçado pelos comunistas, por julgá-lo “uma quartelada inoportuna”. Mas possuía tanta liderança e autoridade moral que seus camaradas pernambucanos o seguiam.

Como relatou um observador enviado pela direção nacional do PCB: “Em Pernambuco há um fenômeno novo no Partido Comunista: o cristianismo”.

Em 1935, Cristiano foi eleito vereador do Recife. Sozinho, teve mais votos do que os dezessete candidatos integralistas, de direita, “puxando” com ele, ainda, o gráfico Chagas Ribeiro e o comerciário João Bezerra. Mas, de novo, não pôde tomar posse. Devido ao levante da Aliança Libertadora, ocorrido naquele ano foi outra vez preso e recolhido à Casa de Detenção, além de demitido do emprego no Estado.

Só em 1937 ele pôde assumir o cargo, enfrentando manifestações de integralistas que queriam impedi-lo, pela força. Mas nunca seria um parlamentar. A Câmara Municipal foi logo fechada pelo golpe que implantou o Estado Novo, e Cristiano se viu obrigado a deixar o Recife. Por dez anos viveu em Santos, Goiânia, Petrópolis e no Rio de Janeiro, dando aulas em colégios e faculdades e trabalhando em jornais. E em 1947 foi expulso do Partido Comunista, devido à sua rebeldia.

Em 1948, Cristiano voltou ao Recife e reassumiu seu cargo de funcionário público, lotado no Arquivo Público Estadual, até se aposentar. Mas em 1961 voltou trabalhar, desta vez na Sudene, sob o comando de Celso Furtado, onde ficou até 1975. E morreu aos 92 anos de idade, em 1987, no seu querido Recife, onde virou nome de rua.

Esquerda em Pernambuco

Na virada no século XVIII para o XIX, o monsenhor Arruda Câmara já propunha um Brasil independente e igualitário, sem “a aristocracia cabundá e acanalhada, que sempre iria por fúteis obstáculos aos avanços”. Frei Caneca, líder da Confederação do Equador (1824), foi outro pensador radical; assim como o mulato Antônio Pedro de Figueiredo, editor da revista O Progresso, e Borges da Fonseca, também jornalista, nos tempos da Praieira (1848). Em 1851, o general Abreu e Lima publicou seu tratado O Socialismo. E nas duas primeiras décadas do século XX o maior agitador era o professor de Direito Joaquim Pimenta, sucedido por Cristiano Cordeiro.

Na virada do século XX

A abolição da escravatura, em 1888, apressou o fim dos engenhos e o surgimento das usinas, que empregavam trabalhadores assalariados. Também cresceu o número de curtumes, fiações, tecelagens e fábricas de doces, cigarros e óleos vegetais. Em 1920, havia 113 estabelecimentos industriais em Pernambuco, mas a população do Recife — cerca de 240 mil pessoas, naquele ano —, mais que dobrara em duas décadas, com multidões de miseráveis vindas do campo. Com tanta mão de obra excedente e sem leis que regulassem as relações trabalhistas, a terrível exploração causou uma sucessão de protestos — inclusive uma greve geral, em 1919 —, todos reprimidos com extrema violência.


Gregório Bezerra,“feito de ferro e de flor”

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Ele queria ser lembrado como amigo das crianças, amado pelo povo, temido e odiado pelos fascistas

No ano de 1935, enfrentavam-se na Europa o movimento comunista, vitorioso na Rússia desde 1917, e o nazifascismo implantado em Portugal, na Itália e na Alemanha, e a disputa entre esquerda e direita estendia-se pelo mundo afora. No Brasil — governado provisoriamente por Getúlio Vargas, que chegara ao poder através de uma revolução apoiada pelo povo, em 1930 —, democratas e comunistas, reunidos na “Aliança Libertadora Nacional” (ALN), confrontavam-se diariamente pela imprensa e nas ruas com os “integralistas” de Plínio Salgado.

Então, no mês de julho, os comunistas lançaram um manifesto pedindo “todo poder à ALN”. Getúlio, em resposta, decretou a ilegalidade do seu partido. Que, em novembro, revidou com uma tentativa de golpe, liderada em Pernambuco por um sargento do Exército muito querido, respeitado, bondoso e valente…

VIDAS SECAS

Gregório Lourenço Bezerra nasceu em Panelas, no agreste pernambucano, em 1901. Aos quatro anos de idade já ganhou “uma enxada velha, gasta pelo tempo, e um cacareco de foice”, conforme anotou nas suas memórias, e assim equipado foi trabalhar na roça para ajudar sua família de agricultores paupérrimos. Aos sete, perdeu o pai, vítima de um acidente, e aos nove sua mãe morreu de pneumonia, agravada pela desnutrição. Então, os onze filhos do casal espalharam-se pelo mundo, vindo o pequeno Gregório para o Recife, onde fez biscates como carregador de bagagens e jornaleiro. Lá, “sem casa, dormia onde o sono me vencesse, comia quando ganhava algum dinheiro e era o dono de todas as calçadas e pés de escada da cidade”. Também foi carvoeiro e ajudante de pedreiro até se alistar, em 1922.

No Exército, ele se alfabetizou, em 1925; fez curso para sargento, em 1926; e em 1930 matriculou-se na Escola de Educação Física da arma. “Até aí era apolítico”, ele escreveu, “mas caíram-me nas mãos alguns livros sobre socialismo e, inspirado no exemplo e na luta heróica do povo soviético, desde a Revolução de 1917, achei o caminho que há muito procurava”. Filiou-se, então, ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), e cinco anos depois estava de armas na mão, tentando colocar o País no rumo que julgava ser o melhor para o seu povo.

O LEVANTE DA ALN

A Aliança Libertadora Nacional — o primeiro grande movimento de massas brasileiro — foi lançada publicamente em março de 1935, no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro. Trabalhadores, intelectuais e militares de diversas correntes democráticas e de esquerda se uniram numa frente para combater o avanço do integralismo. Seu programa incluía, entre outros itens, a suspensão do pagamento da dívida externa, a nacionalização de empresas estrangeiras, a reforma agrária, educação para todos e um governo popular com garantia das liberdades democráticas.

Luís Carlos Prestes, líder da coluna militar que na década anterior havia cruzado o Brasil por dois anos, tentando derrubar a “República Velha” pelas armas, mesmo ausente, foi aclamado seu presidente de honra. O “Cavaleiro da Esperança”, que gozava de imenso prestígio popular, havia aderido ao comunismo e encontrava-se na União Soviética.

Nos meses seguintes, a ALN fez comícios e passeatas em muitas cidades e recebeu milhares de adesões; assim como cresceram, também, a tensão política e os conflitos de rua com os “camisas-verdes” de direita.

Em julho, a Aliança promoveu manifestações para comemorar o aniversário dos levantes militares “tenentistas” da década de vinte. E, contra a vontade de muitos aliancistas não-comunistas, foi divulgado um manifesto propondo a tomada imediata do poder. Então, Getúlio aproveitou-se disso para, com base na Lei de Segurança Nacional — também conhecida como “Lei Monstro”, recém-promulgada, em abril —, ordenar o fechamento da organização.

Na ilegalidade, a ALN perdeu o contato direto com a população. E, na clandestinidade, ganharam força dentro dela os comunistas e os militares dispostos a derrubar Getúlio pelas armas, apesar de muitos deles considerarem que não havia condições objetivas para isso — entre os quais, Gregório Bezerra.

Em novembro, porém, o levante estourou no Rio Grande do Norte. Os rebeldes chegaram a controlar Natal por quatro dias, com apoio das massas — inclusive porque decretam que o transporte público seria gratuito e o povo pôde andar de bonde à vontade, sem pagar. Já no Rio de Janeiro e no Recife, onde os combates foram ferozes, não obtiveram sucesso. E como nada aconteceu no resto do País, o governo varguista abafou o movimento e deu início a uma violenta repressão contra todos os oposicionistas, vinculados ou não à ALN.

Em Pernambuco, chegaram a ser presos três secretários do governador Carlos de Lima Cavalcanti, que também respondeu a processo.

A “intentona comunista”, como aquela ação passaria a ser chamada, depreciativamente, ainda forneceu o pretexto para que, em 1937, Getúlio fechasse o Congresso e implantasse uma ditadura no País, o “Estado Novo”, que se estendeu até 1945.

Torturado e encarcerado por duas ditaduras

Apesar de julgar aquele levante uma ação precipitada, Gregório Bezerra não fugiu da luta e fez o que pôde para levá-lo a bom termo. Mas, ferido em combate, acabou sendo preso, torturado, e por fim condenado a 28 anos de prisão, dos quais chegou a cumprir dez anos nos cárceres do Recife, de Fernando de Noronha e do Rio de Janeiro.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a consequente queda do Estado Novo, em 1945, porém, ele foi anistiado. E nas eleições do ano seguinte foi o candidato a deputado federal constituinte mais votado no Recife e o segundo em Pernambuco, na legenda do PCB. Na Câmara, empenhou-se na defesa das crianças, dos jovens, dos trabalhadores rurais e dos ex-combatentes, até ter o seu mandato cassado em 1948, juntamente com outros treze parlamentares do PCB.

Gregório passou, então, a atuar na clandestinidade, junto aos camponeses de Goiás, Minas, Mato Grosso, São Paulo e Paraná até 1964, quando foi novamente preso, no interior de Pernambuco, tentando organizar a resistência ao golpe militar, ocorrido naquele ano.

Novamente, foi submetido a violentas torturas e depois condenado à prisão, dessa vez por 19 anos. Em 1969, porém, foi libertado pelo MR8, um grupo dissidente do PCB que fazia oposição armada ao regime militar e sequestrou o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Burke Elbrick, trocando-o por 15 presos políticos.

Nos dez anos seguintes ele viveu no México e na União Soviética, até a anistia de 1979. De volta ao Brasil, desentendeu-se com o PCB e filiou-se ao PMBD, pelo qual disputou o mandato de deputado federal por Pernambuco, em 1982, ficando na suplência.

Antes de morrer, em São Paulo, no dia 21 de outubro de 1983, Gregório Bezerra declarou que “gostaria de ser lembrado como um homem que foi amigo das crianças, dos pobres e excluídos, amado e respeitado pelo povo, temido e odiado pelos fascistas”. E assim está sendo até hoje, além dar nome a diversas ruas em vários estados do País.

Barbaridades

Ferido em combate, em 1935, Gregório Bezerra foi tirado do hospital pela repressão, espancado e torturado durante semanas; tal como seu irmão, o dirigente operário José Lourenço Bezerra, que não resistiu às sevícias e morreu, deixando a mulher viúva com cinco filhos pequenos. Em 1964, já com 63 anos de idade, Gregório foi preso no município de Cortês, levado para o Parque de Moto Mecanização do Exército em Casa Forte, no Recife, e lá violentamente espancado com uma barra de ferro pelo coronel Darcy Villocq, pessoalmente. Mergulharam, também, seus pés em solução de bateria de carro, obrigaram-no a andar sobre britas e arrastaram-no pelas ruas do bairro, amarrado pelo pescoço com uma corda, enquanto o coronel incitava a população a linchá-lo, numa cena chocante que escandalizou e revoltou os pernambucanos.

A história de um valente

Valentes, conheci muitos e valentões muito mais uns só valentes no nome e outros só de cartaz uns valentes pela fome outros por comer demais sem falar dos que são homens só com capangas atrás. Mas existe nesta terra muito homem de valor que é bravo sem matar gente mas não teme matador que gosta da sua gente e que luta ao seu favor como Gregório Bezerra feito de ferro e de flor.

Ferreira Gullar

Agamenon Magalhães, o poderoso “China Gordo”

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Ele foi ministro do Trabalho, da Justiça, e interventor em Pernambuco

Nem 1937, Getúlio Vargas era o presidente provisório do Brasil, posto que deveria ocupar até o ano seguinte, quando haveria eleições. Mas, como a turbulência política era grande, então, ele aproveitou-se dela para dar um golpe e implantar o “Estado Novo” — uma ditadura que, sob vários aspectos, se assemelhava ao regime fascista de Benito Mussolini, na Itália.

Já o pernambucano Agamenon Magalhães, que era seu braço direito, ocupando dois ministérios, voltou para sua terra como interventor. E pôs em prática, aqui, um estilo de governo tão próprio que foi chamado de “agamenonismo”…

RÁPIDA ASCENSÃO

Agamenon Sérgio de Godoy Magalhães nasceu em 1893, em Serra Talhada, no sertão pernambucano, numa família de políticos. Foi promotor público e professor de Geografia até se eleger deputado estadual, em 1924; e, em seguida, federal, pelo Partido Republicano Democrata, que era governista. Em 1929, porém, foi para a oposição, aderindo à Aliança Liberal.

Formada por operários, militares e intelectuais de classe média, além de alguns dissidentes das elites, aquela organização pretendia transformar um país arcaico, controlado pelos fazendeiros de café e submisso aos interesses estrangeiros, num país moderno, industrializado e autônomo. E tendo sido derrotada nas eleições presidenciais de 1929, quando lançou o gaúcho Getúlio Vargas contra o paulista Júlio Prestes, chegou ao poder pelas armas na Revolução 1930, pondo fim à “República Velha”, proclamada em 1889.

Agamenon elegeu-se, então, deputado por Pernambuco à Assembleia Nacional Constituinte, convocada em 1933. Já no ano seguinte assumiu o comando do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, tão importante que foi chamado por Lindolfo Collor, o primeiro titular da pasta, de “o Ministério da Revolução”. E em 1937 acumulou, ainda, o posto de ministro da Justiça, tornando-se o segundo homem mais poderoso do Brasil.

MODELO VARGUISTA

O “nacionalismo econômico” varguista, também defendido por Agamenon, propunha a modernização do País através de uma forte intervenção governamental. Mas, para pô-lo em prática, era preciso tanto o apoio da burguesia quanto da classe operária. E para conquistar os trabalhadores Vargas lhes concedeu direitos que nunca tiveram antes, como carteira profissional, regulamentação das jornadas de trabalho, regulamentação do emprego das mulheres e dos menores etc. etc. Também criou os ministérios da Educação e a Saúde, a Justiça Eleitoral, o voto secreto e o voto das mulheres, por tudo isso ganhando o apelido de “Pai dos Pobres”. Em troca, exigiu que os sindicatos se submetessem ao controle do Estado, tal como na Itália fascista, além de reprimir duramente a oposição.

Esse modelo, é claro, não agradava aos comunistas nem aos democratas em geral. E eles se organizaram numa frente popular — a Aliança Libertadora Nacional — que fez uma tentativa fracassada de assalto ao poder pelas armas, em 1935.

A “Intentona Comunista”, como aquela ação foi apelidada, serviu para Vargas aumentar ainda mais a repressão. Mesmo assim, temendo ser derrotado nas eleições de 1938, ele mandou espalhar que os vermelhos estariam pondo em prática um plano chamado “Cohen”, visando a implantação do socialismo no Brasil. E com essa desculpa esfarrapada, deu o golpe.

No dia 10 de novembro de 1937, o gaúcho anunciou pelo rádio que estava promulgando uma nova constituição. Encomendada ao jurista Francisco Campos, o “Chico Ciência”, essa carta — logo apelidada de “polaca” — determinava a extinção da Justiça Eleitoral, dos partidos políticos, e estabelecia eleições indiretas para a Presidência da República, com mandatos de seis anos.

Agamenon, fiel seguidor de Vargas, foi nomeado, então, interventor em Pernambuco, substituindo um antigo aliado, o governador Carlos Lima Cavalcanti, que vinha flertando com a oposição. Ele voltou à sua terra anunciando que trazia consigo “a emoção do Estado Novo” — ou seja, o espírito do regime autoritário recém-implantado. E falava a verdade.

O “agamenonismo” foi uma cópia regional do populismo varguista, buscando uma falsa paz social e a unanimidade a qualquer custo. Para isso, o interventor não economizou na repressão aos adversários, assim como na perseguição às prostitutas, aos homossexuais, às religiões afro-brasileiras etc. E ainda caprichou no culto à sua própria figura, tal como seu líder se fazia cultuar, nacionalmente. Mas também combateu o cangaço, fez obras contra as secas e construiu moradias populares, beneficiando as populações mais pobres.

Aí, veio a Segunda Guerra Mundial, na qual o Brasil se aliou aos Estados Unidos. E o Estado Novo não resistiu à derrota do nazifacismo na Europa.

Duas leis históricas com seu nome e apelido

Em janeiro de 1945, o pernambucano foi novamente convocado por Vargas para o Ministério da Justiça — mas, desta vez, para democratizar o País, não para implantar uma ditadura, como em 1937. E ele re-estabeleceu as eleições diretas para a presidência — com participação, inclusive, do Partido Comunista —, através da chamada “Lei Agamenon”.

Paralelamente, criou uma legislação “antitruste”, regulamentando as operações das grandes empresas e do capital internacional no Brasil, que não foi tão bem recebida quanto a primeira.

Apelidada pelo jornalista Assis Chateaubriand de “Lei Malaia”, em referência ao apelido de “China Gordo”, que Agamenon ganhara em Pernambuco, ela mexia com interesses muito poderosos e provocou uma enorme reação, apressando a saída de Vargas, em outubro de 1945.

A carreira política do “China”, porém, foi em frente. Ele se passou a chefiar a seção pernambucana do Partido Social Democrático (PSD), criado por Vargas, em 1945. Por essa agremiação elegeu-se deputado à nova assembleia constituinte, convocada naquele ano, alinhando-se entre os defensores da intervenção estatal na economia. E para o governo de Pernambuco lançou a candidatura de Barbosa Lima Sobrinho, também vitoriosa, numa eleição disputada ao modo da “República Velha”, ou seja, com muitas fraudes e violência.

Em 1950, porém, a criatura rebelou-se contra o criador. Getúlio Vargas saiu candidato à presidência pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), mas Agamenon apoiou Cristiano Machado, do seu PSD. E lançou sua própria candidatura ao governo estadual contra João Cleofas, da União Democrática Nacional (UDN), apoiado por Vargas.

No Brasil, ganhou o “Pai dos Pobres”. Mas em Pernambuco deu o “China Gordo”.

O mandato de Agamenon como governador democraticamente eleito, porém, durou pouco. Ele morreu subitamente no dia 24 de agosto de 1952 — a mesma data fatídica na qual Vargas se suicidaria, dois anos depois. E hoje dá nome a um hospital público no Recife e a uma importante avenida que liga esta cidade a Olinda, além de outras vias pelo País afora.

Na próxima semana, Gilberto Freyre.

Trabalhismo

Até 1930, as reivindicações dos trabalhadores eram ignoradas ou respondidas à bala por governos e patrões. Vargas, porém, lhes concedeu muitos benefícios, fazendo dos sindicatos, em troca, “correias de transmissão” do seu governo. Como ministro do Trabalho, Agamenon promoveu intervenções em vários deles, mas fiscalizou o cumprimento das novas leis, criou o seguro por acidente de trabalho, a indenização por demissão sem justa causa, e acelerou a criação dos Institutos de Aposentadoria e Pensões. A CLT, decretada por Vargas no dia 1º de maio de 1943, “consolidaria” essas conquistas.

A Lei Malaia

Promulgada em junho de 1945, essa lei visava reprimir abusos do poder econômico estabelecendo regras para fusões e aquisições em setores como o bancário, elétrico e das comunicações. Também criava a Comissão Administrativa de Defesa Econômica (Cade), e foi violentamente atacada pelos sindicatos patronais do comércio, da indústria e da agropecuária. Os Estados Unidos também se queixaram de discriminação contra empresas estrangeiras e a imprensa caiu de pau sobre ela. O Diário de Pernambuco, por exemplo — que pertencia, então, a Assis Chateubriand —, classificou-a de “nazista” e contrária à propriedade privada; e a “Malaia” foi, de fato, mais uma lei imposta “na marra” pelo Estado Novo. Por outro lado, cumpriu um papel fundamental, colocando o problema dos “trustes” e dos “cartéis” em debate no País.

Gilberto Freyre, “o Mestre de Apipucos”

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Um dos maiores sociólogos do século XX, ele também foi um jornalista e político atuante no Brasil

Praça da Independência, ou “Pracinha do Diário”, no centro do Recife. Tarde do dia três de março de 1945. De uma janela do primeiro andar da sede do Diário de Pernambuco, um orador discursava pedindo o fim da ditadura de Getúlio Vargas, o restabelecimento do Estado de Direito e a anistia aos presos políticos. E era muito aplaudido pela multidão à sua frente, formada principalmente por universitários, os promotores daquele ato. Então, começou um tiroteio, promovido pela polícia, e Manoel Elias dos Santos, carvoeiro, e Demócrito de Souza Filho, acadêmico de Direito, tiveram seus nomes inscritos na extensa lista dos mártires pernambucanos, sacrificados na luta pela liberdade e pela democracia.

O orador — cujo nome também está inscrito na História — era Gilberto Freyre, um intelectual respeitadíssimo no País e fora dele, então adorado pelos estudantes. Mas que, tempos depois, iria decepcioná-los profundamente…

FORMAÇÃO

Gilberto de Mello Freyre nasceu em 1900, filho de Alfredo Freyre, catedrático da Faculdade de Direito do Recife, e de Francisca de Mello Freyre, sendo neto e bisneto de senhores de engenho. E até os dez anos de idade não sabia escrever, só desenhava.

Aos 14, porém, já dava aulas de latim. Aos 16, fez sua primeira palestra, no Cine Pathé de Nossa Senhora das Neves (hoje, João Pessoa), na Paraíba, dissertando sobre Spencer e o problema da Educação no Brasil. Aos 18, foi estudar na Universidade Baylor, do Texas, Estados Unidos, e iniciou sua colaboração com o Diário de Pernambuco. Aos 21, foi fazer mestrado na Universidade de Colúmbia, Nova Iorque. Aos 22, publicou por lá sua dissertação Vida social no Brasil nos meados do século XIX, ganhando o título de mestre e rasgados elogios de intelectuais norte-americanos de peso. E de lá partiu para uma viagem pela Europa onde travou contato com as correntes de vanguarda da época, tanto artísticas quanto políticas, e com os modernistas brasileiros Vicente do Rego Monteiro, Tarsila do Amaral e Brecheret.

De volta ao Brasil, organizou o livro comemorativo do primeiro centenário de fundação do Diário de Pernambuco, do qual se tornou redator-chefe aos 25 anos. Aos 27, foi nomeado chefe de gabinete do novo presidente (governador) de Pernambuco, Estácio Coimbra, que fora vice-presidente da República e era casado com uma prima do seu pai. Aos 28, passou, ainda, a editar o jornal A Província, onde também publicava ilustrações e caricaturas. Mas, aos 30, uma revolução deu um novo rumo à sua vida.

ANTI GETÚLIO

Em 1930, a Aliança Liberal, um frente política encabeçada pelo gaúcho Getúlio Vargas, pôs abaixo a “velha república” dos coronéis, prometendo ao País modernidade e independência dos interesses estrangeiros. A casa do pai de Gilberto — figura expressiva do antigo regime, em Pernambuco — foi, então, depredada pela malta; e Estácio Coimbra, deposto, partiu para Lisboa acompanhado pelo seu ex-chefe de gabinete. E foi lá, longe do dia-a-dia da política provinciana, que o jovem sociólogo deu início às pesquisas que fundamentariam sua obra prima, Casa Grande & Senzala, lançada em dezembro de 1933.

Nos anos seguintes, de volta à sua terra, Gilberto prosseguiu com o trabalho acadêmico, publicando Sobrados e Mocambos, em 1936, entre outras obras. Em 1941, casou com Maria Madalena Guedes. E colaborou com diversos jornais como o La Nación, de Buenos Aires, o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, O Estado de S. Paulo e o Diário de Pernambuco, sempre combatendo Vargas, mesmo após a implantação do Estado Novo, em 1937, que endureceu ainda mais a repressão aos oposicionistas.

Em consequência, ele passou um dia preso na Casa de Detenção do Recife, juntamente com seu pai, em 1942, por denunciar atividades nazistas e racistas no Brasil — inclusive em Pernambuco. Também teve livros apreendidos e parou de escrever para alguns periódicos, devido à constante violação da sua correspondência. Mas o regime populista e autoritário então vigente, semelhante ao fascismo do italiano Mussolini, não resistiria por muito tempo ao confronto com os democratas em geral, com os comunistas e também com os chamados “entreguistas” — os “testas-de-ferro” do capitalismo internacional, inimigos do nacionalismo varguista.

É certo que o varguismo modernizara a economia do País e criara a legislação trabalhista até hoje em vigor, o que lhe garantia o apoio das massas. Contudo, o engajamento do País na guerra contra o “Eixo” Alemanha, Itália e Japão, em 1942 — motivado pelo torpedeamento de navios brasileiros por submarinos alemães e incentivado pela ajuda norte-americana para a criação da Companhia Siderúrgica Nacional —, determinou seu fim.

Uma obra cujo valor não pode ser contestado

Cada vitória dos aliados contra as tropas nazifascistas, na Europa, representava uma derrota para Vargas, no Brasil. E ele colocou o pernambucano Agamenon Magalhães no Ministério da Justiça, em janeiro de 1945, com a incumbência de lhe preparar uma saída honrosa.

Agamenon, por sua vez, até aí interventor em Pernambuco, deixou no governo do estado seu antigo chefe de polícia, Etelvino Lins, que continuou a reprimir a oposição com a energia de sempre. Então, em março de 1945, houve o comício e o tiroteio em frente ao Diário de Pernambuco, que em seguida foi invadido, depredado e acusado por Etelvino, em nota oficial, de fazer agitação difundindo “ideias da Revolução Francesa”.

Em abril, porém, os presos políticos foram anistiados. Em maio, a guerra acabou na Europa. Em outubro, Vargas foi deposto pelos militares. E, em dezembro, houve eleições gerais com participação, inclusive, das mulheres, pela primeira vez no Brasil.

O general Eurico Gaspar Dutra tornou-se presidente, pelo PSD, com apoio de Vargas, que foi eleito senador por São Paulo e pelo Rio Grande do Sul, pelo PTB. E Gilberto Freyre conquistou um mandato de deputado federal constituinte pela UDN, em Pernambuco, com o voto da estudantada. Mas, apesar da sua atuação destacada no Congresso, não foi reeleito, em 1950, e retornou à vida acadêmica e ao jornalismo.

Aí, veio o golpe militar de 1964 e os estudantes saíram de novo às ruas, em defesa da liberdade. Gilberto, porém, dessa vez, ficou do lado oposto. Ele apoiou publicamente o regime de exceção, sendo inclusive nomeado para o Conselho Federal de Cultura pelo general Médici, no auge da ditadura, em 1969.

Por conta disso, a maioria dos meios acadêmicos trocou a admiração que lhe votava por repulsa e indignação — sentimentos só minimizados, pouco a pouco, após a volta da democracia. O valor da sua obra, fundamental para o entendimento da formação do Brasil, porém, jamais foi contestado, pairando acima de qualquer opinião sobre as posturas políticas do seu criador.

Gilberto Freyre, apelidado de “Mestre de Apipucos”, o bairro onde morava, morreu em 1987, dando hoje nome ao aeroporto do Recife e a ruas de várias cidades. Inclusive, Lisboa. E seus livros continuam sendo publicados e lidos em dezenas de idiomas.

A escrita de Gilberto Freyre

Ele não se dizia sociólogo, mas “um escritor treinado em Sociologia”. E Casa Grande & Senzala causou um tremendo impacto, em 1933, não só pelo conteúdo — uma contestação às teses então correntes que afirmavam a superioridade da raça branca, e o enaltecimento da mestiçagem promovida pelos portugueses no Brasil —, mas, também, pela alta qualidade literária, pela linguagem ao mesmo tempo popular e erudita. E, ainda, sem falsos pudores ao abordar questões sexuais, a ponto de ser taxada de pornográfica por muita gente.

Premiações

A lista das comendas recebidas por Freyre chega a ser cansativa, de tão longa. Afora as brasileiras, ele ganhou o título de Sir conferido pela Rainha Elisabeth da Inglaterra; a Grã-Cruz de Alfonso, El Sabio, da Espanha; a Legião de Honra da França; a Grã-Cruz do Mérito da Alemanha e a Medalha Picasso da Unesco, entre outras. Doutor Honoris Causa ele o foi pelas universidades de Coimbra (Portugal), Sorbonne (França), Colúmbia (EUA), Sussex (Inglaterra) e Münster (Alemanha), e pelas federais brasileiras de Pernambuco, do Rio de Janeiro e da Paraíba. Também foi delegado brasileiro em eventos como a 4ª Conferência da ONU, em 1949, que o escolheu para estudar o problema racial na África do Sul. E, além disso, a escola de samba da Mangueira desfilou no carnaval de 1962 com o enredo Casa Grande & Senzala.

Celso Furtado, o maior economista brasileiro

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Um presidente o convocou para “salvar” o Nordeste, e outro para tirar o País de uma crise profunda

Ao fim da Segunda Guerra Mundial (1939/1945) o mundo dividiu-se em dois grandes blocos, de acordo com as suas orientações econômicas e políticas: o socialista, sob o comando da União Soviética, e o capitalista, liderado pelos Estados Unidos. Essa nova ordem teve um forte impacto sobre o Brasil, inserido no então chamado “mundo livre”. E, particularmente, sobre o Nordeste.

A queda do Estado Novo — um regime nacionalista e autoritário implantado em 1937 por Getúlio Vargas — e a redemocratização do País foram suas primeiras consequências; e o tema das desigualdades regionais ganhou nova importância. A “guerra fria” entre as duas superpotências fez a pobreza nordestina deixar de ser vista apenas como um problema econômico e geográfico relacionado com a seca, e tornar-se uma questão social e política. Afinal, se as massas famintas daquela região se revoltassem o Brasil poderia marchar para o comunismo e até levar com ele a América Latina, o que muito preocupava o “Grande Irmão do Norte”.

Impulsionadas por esses interesses estratégicos — mas, também, com a colaboração de muita gente bem-intencionada que queria, de fato, combater a pobreza e o subdesenvolvimento —, medidas começaram a ser tomadas. E se alguém pode ser considerado um personagem-símbolo do esforço de “salvação” do Nordeste empreendido naquela época, é o economista Celso Furtado…

O CEPALINO

Celso Monteiro Furtado nasceu em 1920, em Pombal, no sertão da Paraíba, filho do juiz Maurício Medeiros Furtado e de Maria Alice Monteiro Furtado. Concluiu o segundo grau no Ginásio Pernambucano, no Recife, cursou Direito no Rio de Janeiro e em 1944 foi convocado pela Força Expedicionária Brasileira (FEB), servindo como suboficial na Itália durante a guerra. Depois foi fazer doutorado em Economia da Universidade de Paris-Sorbonne, concluído em 1948 com uma tese sobre a economia brasileira no período colonial. E lá conheceu sua primeira esposa, a química argentina Lucia Tosi.

De volta ao Brasil, Celso trabalhou na Fundação Getúlio Vargas, mas logo foi para o Chile, onde se integrou à Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), recém-criada pelas Nações Unidas. Dirigida pelo argentino Raul Prebisch, a Cepal tornou-se um importante centro de debates sobre disparidades de riqueza e gerou a única escola de pensamento econômico influente surgida no Terceiro Mundo. Os cepalinos analizavam as relações entre os países centrais — industrializados — e os periféricos — agrícolas — e propunham modos de intervir no processo de desenvolvimento desses últimos.

Retornando, de novo, à sua terra, Celso presidiu o Grupo Misto Cepal-BNDES, que produziu um estudo avançado sobre a economia brasileira, e em 1953 foi para a Universidade de Cambridge, Inglaterra, onde escreveu Formação Econômica do Brasil. Analisando a evolução e a distribuição da riqueza do País de acordo com a estrutura produtiva de cada período histórico — um método chamado de “estruturalista”, desenvolvido na Cepal — essa obra, publicada em 1959, já nasceu clássica. E teve grande influência no Plano de Metas lançado naquele ano pelo então presidente Juscelino Kubitschek.

JK, o “presidente bossa-nova”, pretendia que o seu governo (1956/1961), caracterizado pela construção de Brasília e pela industrialização acelerada, fizesse o País avançar “cinquenta anos em cinco”. E com seu entusiasmo contagiante convidou Celso Furtado para fundar e dirigir a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), e com ela tirar a região do atraso.

SALVACIONISMO

A ideia era recente, mas vinha ganhando força. No passado, os governos intervinham na região apenas durante as secas, abrindo frentes de trabalho que, em geral, só beneficiavam os latifundiários e os políticos. Em 1952, porém, durante o seu segundo governo, Getúlio Vargas criou o Banco do Nordeste, para facilitar o desenvolvimento regional. Em 1955, houve no Recife o Congresso de Salvação do Nordeste, com participação de empresários, intelectuais e políticos, propondo uma frente de combate à pobreza. E, em 1956, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, reunida em Campina Grande, Paraíba, colocou esse problema no centro dos seus debates, com grande repercussão na opinião pública.

De esquecido, o Nordeste virou o alvo das atenções. Parecia que o futuro do País seria nele decidido. Se não fosse “salvo”, seu povo faria uma revolução. Portanto, era preciso tomar providências. Nada que ameaçasse a propriedade privada, é claro; mas, ao menos, que fossem implantadas indústrias capazes de transformar alguns milhares de camponeses miseráveis em trabalhadores assalariados e a produção agrícola fosse melhorada.
Para isso a Sudene foi criada, em 1959, com sede no Recife, e começou a trabalhar sob a direção de Celso Furtado. Dois anos depois, contudo, o grande economista foi convocado pelo presidente João Goulart para debelar uma grave crise nacional.

Um grande pensador e também um homem de ação

“Jango” fora vice de Jânio Quadros — uma figura exótica que, eleito em 1960, renunciou intempestivamente em agosto de 1961. Tido como esquerdista, porém, teve dificuldades para assumir a presidência, devido à oposição dos militares. E teve dificuldades ainda maiores para governar, em função da herança deixada por Juscelino Kubitschek — que, de fato, modernizou o País, mas cujo “desenvolvimentismo” acelerou também a dívida externa, a dívida pública e inflação, já batendo na casa dos 70% ao ano, em 1962.

Nomeado ministro do Planejamento — o primeiro do Brasil — Celso Furtado lançou, então, um Plano Trienal que propunha a nacionalização gradual da indústria e a melhoria da distribuição da renda para aquecer o mercado interno. Mas o remédio, de longo prazo, não atendeu à urgência da doença. Em 1963, a inflação chegou a 90% e ele retornou à Sudene. Na sequência, veio o golpe militar de 1964 e seu nome foi um dos primeiros da lista de cassados pelo Ato Institucional nº 1.

Celso partiu, então, para o exílio no Chile, Estados Unidos, França e Inglaterra, a convite de algumas das mais prestigiosas universidades do mundo como Yale, Columbia e Cambridge, além da Sorbonne, da qual foi professor por vinte anos. Também esteve em muitos países a serviço da ONU, e, em 1978, casou-se com a jornalista e tradutora Rosa Freire d’Aguiar.

Com a anistia, em 1979, ele retornou, mais uma vez. Em 1985, ajudou a criar o Plano de Ação do presidente Tancredo Neves, que morreu antes de tomar posse. Foi, então, nomeado embaixador junto à Comunidade Econômica Europeia, pelo presidente Sarney. E, em seguida, ministro da Cultura, cargo que exerceu até 1988.

Nos anos seguintes, Celso Furtado retomou a vida acadêmica, participou de várias comissões internacionais, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras e faleceu no Rio de Janeiro, em 2004, deixando seu nome na História não só como o maior economista brasileiro, mas também como um homem de ação que pelejou, de fato, para tirar o seu país do subdesenvolvimento.

Nacionalismo

Em 1955, o Congresso de Salvação do Nordeste reuniu a elite política e intelectual da região, no Recife, e produziu uma carta denunciando “as condições de retardamento que mantém em plano inferior de vida todos os seus habitantes”. Elas seriam “o flagelo da secas, os latifúndios improdutivos, o analfabetismo, as endemias e as carências alimentares”, além das empresas estrangeiras, vistas nos anos cinquenta como grandes sanguessugas do País. E concluía pela “necessidade inelutável de se retirarem os entraves ao desenvolvimento regional”, inclusive “convocando o governo e a iniciativa privada a substituir por empresas nacionais as concessionárias estrangeiras de serviços públicos”.

Plano da Sudene

O Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN) da Sudene criou, em 1959, um Plano de Ação com quatro diretrizes básicas. A primeira seria facilitar os investimentos para a criação de indústrias. A segunda, diversificar a produção agrícola na Zona da Mata e assim aumentar a oferta de alimentos nas cidades, cuja população cresceria com a industrialização. A terceira, melhorar a produtividade do Semi-árido e torná-lo mais resistente às secas. E a quarta era a promover a ocupação do interior do Maranhão por camponeses que perdessem suas terras e ocupações, devido à reorganização da economia regional.

Francisco Julião, o guia das temidas Ligas Camponesas

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Ele causou medo e ganhou admiração como um dos grandes agitadores de massas do Terceiro Mundo, durante a “guerra fria”

Estava o deputado Francisco Julião certo dia na varanda de sua casa, no Recife, lendo o Diario de Pernambuco, quando bateram palmas no portão. Tratava-se de um grupo de camponeses que, com José dos Prazeres à frente, queriam dar uma palavrinha com ele. Isso foi em 1955.

José e seus companheiros viviam no Engenho Galiléia, em Vitória de Santo Antão, como “foreiros”, ou seja, pagando um “foro” mensal ao proprietário da terra da qual tiravam, mal e mal, o seu sustento. Sua pobreza era tanta que, quando morria um, para levar o defunto ao cemitério era preciso tomar um caixão emprestado à Prefeitura e devolvê-lo após o enterro.

Para se ajudarem mutuamente os “galileus” criaram, então, a Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco (SAPPP), mas o dono do engenho, Oscar Beltrão, mandou fechá-la, pois aquilo lhe cheirava a comunismo. Eles, porém, não acataram a ordem e recorreram até ao governador Cordeiro de Farias e à Assembleia Legislativa, sem encontrar apoio. Aí foram procurar o deputado, que já se manifestara a favor dos camponeses, para representá-los como seu advogado.

Julião aceitou na hora e deu início, ali, a uma trajetória que em poucos anos o levaria às primeiras páginas dos grandes jornais do mundo, apontado como um novo Che Guevara ou um Mao Tse Tung pernambucano…

GUERRA FRIA

Francisco Julião Arruda de Paula nasceu em 1915 em Bom Jardim, no agreste pernambucano, filho de Adauto Barbosa de Paula e Maria Lídia Arruda de Paula. Formou-se advogado em 1939 e montou escritório no Recife. Com o fim do Estado Novo e a redemocratização do País, em 1945, filiou-se ao Partido Socialista Brasileiro (PSB) e tornou-se o primeiro deputado eleito por essa legenda no Estado, em 1954.

Vivia-se, então, a chamada “guerra fria”, quando duas superpotências — os Estados Unidos, capitalista, e a União Soviética, socialista — disputavam a hegemonia mundial, e a miséria nordestina preocupava tanto as elites brasileiras quanto as norte-americanas. Ambas temiam que as massas daqui saíssem da letargia e arrastassem o Brasil para o comunismo, levando com ele a América Latina, num “efeito dominó”. E — paranóias à parte — havia motivos para isso.

Naquele 1955, por exemplo, realizou-se no Recife o Congresso de Salvação do Nordeste, reunindo políticos e intelectuais e tendo Francisco Julião como presidente de honra, que denunciou o terrível quadro econômico e social da região. Houve ainda o 1° Congresso de Camponeses de Pernambuco, com três mil participantes, promovido pela SAPPP. E novas associações campesinas começaram a se formar em Pernambuco.

Mergulhando de cabeça nessa luta Julião foi reeleito deputado estadual em 1958, com grande votação. E em 1960 conseguiu a posse do Engenho Galiléia para os seus foreiros, aprovando uma lei que permitia a desapropriação de terras, com indenização aos antigos donos.

Ele não recusava a pecha de agitador. Afinal, “até remédio você precisa agitar antes de usar”, dizia. Comunista, porém, nunca foi, e tinha sérias divergências estratégicas com o PCB.

O Partido Comunista, por exemplo, privilegiava a luta dos trabalhadores rurais assalariados por meio dos seus sindicatos, e para Julião o importante era uma reforma agrária radical que transformasse camponeses em pequenos proprietários. Mas, ironicamente, seu movimento ganhou as páginas dos jornais de todo o País como “Ligas Camponesas” — nome das organizações criadas no campo pelos comunistas, na década anterior.

Em 1959, por exemplo, o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, publicou uma série de reportagens de Antônio Callado, sobre as Ligas e o seu advogado, que causou um grande impacto. E, além de ficar famoso no Brasil, Julião logo virou notícia na imprensa internacional.

VITRINE MUNDIAL

Em 1960, o deputado integrou-se à comitiva do presidente recém-eleito Jânio Quadros numa polêmica visita a Cuba, e passou a se relacionar politicamente com Fidel Castro e outros líderes da esquerda mundial. E naquele ano, ainda, o The New York Times começou a alertar para o perigo representado pelas Ligas Camponesas, sob a liderança de Julião. Manchete de primeira página: “Pobreza do Nordeste do Brasil gera ameaça de revolta”.

A CIA também advertiu o presidente John Kennedy, que em 1961 despachou para cá uma missão chefiada pelo seu irmão, o senador Edward Kennedy. E os norte-americanos investiram aqui mais de cem milhões de dólares em projetos sociais, conjuntamente com a Sudene, através do programa “Aliança para o Progresso”. Por outro lado, expoentes da esquerda mundial, como o filósofo francês Jean Paul Sartre e sua mulher, Simone de Beuvoir, também visitaram a região.

Mas as Ligas seguiram avançando. Em 1961, já estavam em dez estados. Em 1962, lançaram um jornal, cogitaram fundar um partido político, e Julião foi eleito deputado federal. Porém, quando João Goulart — que fora ministro do Trabalho de Getúlio Vargas — assumiu a presidência do País, após a bizarra renúncia de Jânio Quadros, os sindicatos de trabalhadores rurais começaram a ganhar espaço, em detrimento das Ligas.

Preso, cassado e exilado por quinze anos

Em 1962, ainda, Julião perdeu um grande amigo, o respeitado líder camponês João Pedro Teixeira, covardemente assassinado na Paraíba, a mando de proprietários de terras — uma tragédia narrada no clássico documentário Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho. E com ele perdeu, também, parte da sua influência dentro das próprias Ligas.

O ano de 1963 também não foi bom. No plebiscito nacional feito para decidir se o Brasil, que se tornara parlamentarista, voltaria a ser presidencialista, Julião pregou abstenção e isolou-se ainda mais dentro das esquerdas, que votaram a favor do presidencialismo.

A aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural, concedendo a esta categoria os mesmos direitos dos trabalhadores urbanos, também esvaziou as Ligas, nacionalmente. Ainda mais em Pernambuco, quando a diária paga aos camponeses da zona canavieira aumentou 150%, com Miguel Arraes no governo.

Mas aí veio o golpe civil-militar de 1964, e o rolo compressor passou por cima de toda a esquerda, independentemente das suas nuances políticas. No Nordeste, tão decantado como potencialmente revolucionário, a repressão foi ainda mais brutal. Dirigentes tanto da Ligas quanto de sindicatos, políticos e cidadãos que de algum modo apoiavam as lutas dos trabalhadores foram demitidos, perseguidos, presos e torturados. Muitos desapareceram.

O deputado Francisco Julião foi detido e teve os direitos políticos cassados, apesar dos seus protestos de jamais ter apoiado a luta armada e de se opor às ocupações de terras realizadas em Pernambuco. E, libertado no ano seguinte, exilou-se no México — país que fizera uma revolução campesina no início do século — onde ficou até a anistia, em 1979.

De volta à sua terra, Julião filiou-se ao PDT de Brizola e candidatou-se a deputado federal em 1986, mas não se elegeu.

Viveu então, entre o seu país e o México, onde morreu, em 1999, deixando seu nome inscrito na História como o maior líder das lutas pela Reforma Agrária no Brasil.

O plebiscito

Sete meses após assumir a presidência, em janeiro de 1961, Jânio Quadros, surpreendentemente, renunciou, e os militares recusaram-se a dar posse ao vice João Goulart, tido como esquerdista. Mas Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul e cunhado de Jango, formou a Cadeia da Legalidade, impedindo o golpe, e a saída negociada para o impasse foi a mudança do regime presidencialista, vigente no País, para o parlamentarista, no qual o presidente, como a rainha da Inglaterra, “reina, mas não governa”. Goulart, porém, deu a volta por cima convocando um plebiscito nacional que lhe devolveu os poderes do cargo, em 1963, com apoio de praticamente toda a esquerda — excetuando Julião, que se absteve.

Marcha camponesa

O sociólogo Fernando Antônio Azevedo conta que era garoto quando assistiu uma marcha pela Reforma Agrária, em João Pessoa. E ela o impressionou não só pelo grande número de camponeses, mas porque eles atravessaram a cidade lenta e silenciosamente, com foices nas mãos e chapéus de palha na cabeça, da estação ferroviária até o local do comício, onde João Goulart discursou. A cidade parou e a classe média fechou-se em casa, tremendo de medo. E Fernando jamais esqueceu a figura de Julião, na primeira linha, magro e de cabelos revoltos, como um poeta romântico. Por isso, anos depois, a sua dissertação de mestrado foi As Ligas Camponesas, que se tornou uma obra clássica sobre o tema.

Josué de Castro, o brasileiro mais respeitado no mundo

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Lutando contra a fome, ele se tornou uma celebridade internacional e recebeu três indicações para o Prêmio Nobel

Um jovem recifense formou-se na Faculdade de Medicina da Universidade do Rio de Janeiro, — atual UFRJ —, em 1929, com apenas 20 anos de idade, e depois foi estagiar por alguns meses nos Estados Unidos. Então, voltou para sua terra, abriu um consultório, e pouco depois foi contratado por uma fábrica local para cuidar de trabalhadores com um estranho problema de saúde, que os tornava indolentes e apáticos. Essa incumbência mudou sua vida.

Ele não tardou a diagnosticar a doença: “Sei o que meus clientes têm, mas não posso curá-los porque sou apenas médico e não diretor dessa empresa. O mal dessa gente é fome”. Em consequência, foi despedido. Mas, a partir daí, dedicou-se ao estudo dessa enfermidade, tornando-se um influente nutricionista, geógrafo, sociólogo, político, escritor e ativista do combate à fome no País e fora dele. Ficou tão famoso internacionalmente, nos anos 50 e 60, quanto grandes estrelas do cinema e dos esportes, e chegou a receber três indicações ao Prêmio Nobel em duas categorias distintas: Medicina, em 1953, e Paz, em 1963 e 1970…

O ESTUDANTE

Josué Apolônio de Castro nasceu no Recife em 1908, filho único de Manoel Apolônio de Castro, proprietário de terras em Cabaceiras, no sertão da Paraíba, e de Josepha Carneiro, a “Dona Moça”, filha de um senhor de engenho da zona da mata pernambucana — uma família, portanto, de produtores rurais do Nordeste, região e econômica e politicamente atrasada, que ainda vivia da agricultura e sofria terríveis estiagens, de tempos em tempos.

Foi na seca de 1877, aliás, na qual morreram mais de 300 mil pessoas, que a família de Manoel Apolônio transferiu-se para o Recife. Mas, felizmente, ao contrário da imensa maioria dos retirantes, os Castro possuíam recursos; e quatro décadas depois o garoto Josué pôde ser matriculado em bons colégios, como o Ginásio Pernambucano e o Instituto Carneiro Leão.

Nesse último, Josué foi orientado pelo educador Pedro Augusto Carneiro Leão — a pessoa mais influente em sua vida, conforme ele declarou, mais adiante. E aos 17 anos foi estudar medicina na Bahia, autoconfiante, seguro da sua competência e vaidoso a ponto de só sair à rua com um livro bem grosso debaixo do sovaco, posando de intelectual.

Aliás, afora a medicina, ele também se sentia atraído pelas artes e passou a publicar poemas, crônicas e artigos sobre literatura, pintura e cinema em diversos jornais e revistas. E no último ano do curso transferiu-se para o Rio de Janeiro.

CIÊNCIA E POLÍTICA

De volta ao Recife, Josué começou a clinicar, teve a experiência na fábrica, e em 1932 realizou uma pesquisa sobre as condições de vida das classes operárias do Recife, na qual estabeleceu, pela primeira vez, a relação entre a alimentação dos trabalhadores e sua produtividade. Em 1933, foi um dos fundadores da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais do Recife, onde ensinou Geografia Humana. E em 1934 casou-se com Glauce Rego Pinto, com quem teria três filhos: Josué Fernando, Anna Maria e Sonia.

No ano seguinte, Josué mudou- se para o Rio de Janeiro e começou a participar de diversos projetos governamentais. Dirigiu pesquisas no Instituto de Tecnologia Alimentar, coordenou a implantação dos primeiros restaurantes populares, desenvolveu programas de educação nutricional etc. E, na política, teve atuação destacada no movimento pela criação do salário mínimo, que passou a vigorar em 1940, por decreto de Getúlio Vargas.

Nos anos seguintes ele foi estudar in loco os problemas alimentares da Argentina (1942), dos Estados Unidos (1943), da República Dominicana e do México (1945), e da França (1947). Em 1946, fundou o Instituto de Nutrição da Universidade do Brasil e publicou Geografia da Fome, no qual apontou a verdadeira causa da tragédia nordestina: a exploração dos pobres pelos ricos. Demonstrando que a miséria devia-se não a fatores climáticos e raciais, mas ao modelo econômico e social então vigente, esse livro não só revolucionou a ciência como a despertou a consciência nacional para o problema.

Geopolítica da fome, por sua vez, lançado em 1951, como uma extensão da obra anterior, também se tornou um marco histórico na discussão das questões alimentares e populacionais, defendendo, inclusive, idéias revolucionárias como o desenvolvimento sustentável — dessa vez, em escala global. A fama de Josué ganhou, então, o mundo, e ele foi eleito presidente da Conferência da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), em 1952, com votos de setenta países.

Na FAO, ele lançou diversos projetos de combate à fome no Terceiro Mundo, unindo conhecimentos científicos e habilidade política, muitas vezes enfrentando acirrada oposição dos países desenvolvidos. Mas o respeito que impunha era tamanho que foi reeleito por unanimidade, em 1954. Seus livros também chamaram atenção de cineastas neo-realistas italianos como Roberto Rosselini e Cesare Zavattini, embora apenas Rodolfo Nanni tenha chegado a filmar O Drama das Secas, no Brasil, em 1958.

Um dos maiores sábios e políticos do século XX

Findo o segundo mandato na FAO, Josué voltou para Pernambuco, elegendo-se deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), em 1955. E no Congresso Nacional apresentou diversos projetos ligados a questões agrárias, educacionais, culturais e econômicas — inclusive a regulamentação da profissão de nutricionista —, reelegendo-se em 1959. No campo internacional, fundou a Associação Mundial de Luta contra a Fome (Ascofam), e em 1962 foi nomeado embaixador do Brasil na ONU, pelo presidente João Goulart.

A essa altura, Josué era conhecido e reverenciado em todo o mundo, capaz de atrair, por exemplo, uma platéia de 3.500 pessoas na cidade de Rouen, no interior da França, para ouvi-lo palestrar. Mas sua luta a favor dos pobres e da reforma agrária era muito inconveniente para os responsáveis pelo golpe de estado civil-militar de 1964, que não vacilaram em cassar seus direitos políticos logo no primeiro Ato Institucional, privando o País dos seus grandes serviços.

Impedido de voltar ao Brasil, Josué foi viver em Paris, onde fundou e dirigiu o Centro Internacional para o Desenvolvimento (CID), presidiu a Associação Médica Internacional para o Estudo das Condições de Vida e Saúde (Amievs) e foi professor do Centro Universitário Experimental daquela cidade. E ainda fez parte dos Cidadãos do Mundo, um conselho formado por treze personalidades do calibre de Bertrand Russell, Linus Pauling, Rajan Nehru etc., que a partir de 1967 reunia-se para discutir os grandes problemas internacionais.

Josué, contudo, sentia uma falta terrível da sua terra, a ponto de declarar que “não se morre apenas de enfarte ou de glomerulonefrite crônica, mas também de saudade”. E sofreu muito até conseguir autorização para voltar, em setembro de 1973. Mas enquanto esperava, ansioso, a entrega do passaporte pela embaixada brasileira, morreu subitamente de ataque cardíaco.

Entre as inúmeras comendas que recebeu, Josué de Castro foi premiado pelo Conselho Mundial da Paz e ganhou a Legião de Honra da França, afora as três indicações para o Nobel e uma homenagem de outro genial mulato pernambucano, Chico Science, na música Da lama ao caos: “Ô Josué, nunca vi tanta desgraça / Quanto mais miséria tem / mais urubu ameaça…”.

A descoberta

“A fome se revelou espantosamente aos meus olhos durante a minha infância nos bairros miseráveis de Recife, na lama dos mangues do Capibaribe, fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo. São seres anfíbios, habitantes da terra e da água, meio homens e meio bichos, arrastando-se na lama para poder sobreviver. (…) E quando cresci e saí pelo mundo afora, me apercebi com nova surpresa que o que eu pensava ser um fenômeno local, um drama do meu bairro, era um drama universal”. Josué de Castro, no prefácio para a edição portuguesa de Homens e Caranguejos, 1966.

O caminho

“Josué de Castro dirigiu seus estudos não apenas para o problema da fome em si e de sua incidência sobre as pessoas mal alimentadas, mas sobre as causas desse problema e a ameaça que representava para a humanidade, as sequelas que deixava nas populações, com repercussões na esperança de vida, na produção e no desenvolvimento intelectual. Estudou Geografia para localizar as áreas de fome endêmicas no mundo e as implicações provocadas pelas condições naturais e pela organização social, e preocupou-se, também, com a Sociologia, daí a sua visão da totalidade do problema e o norteamento tanto dos seus estudos quanto da sua ação política nos planos nacional e internacional”. Manoel Correia de Andrade, em Josué de Castro: o homem, o cientista e seu tempo.

Pelópidas Silveira, três vezes prefeito do Recife

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Político hábil e técnico competente, ele uniu as esquerdas em Pernambuco e abriu o caminho para o governo Arraes

Professor de Engenharia e diretor de Viação e Obras Públicas de Pernambuco, ele era um técnico sem militância política, com apenas 30 anos de idade, quando o interventor José Domingues o convidou a assumir a Prefeitura do Recife, em fevereiro de 1946. A ditadura de Getúlio Vargas acabara no ano anterior e já houvera eleição direta para a presidência da República, vencida pelo general Eurico Gaspar Dutra, do PSD. Mas só haveria eleições para governador no ano seguinte, e os estados continuavam sob a tutela de interventores nomeados pelo presidente. Que, por sua vez, nomeavam os prefeitos dos municípios.

Sua gestão foi curta. Acusado de comunista, José Domingues, que o indicara, foi trocado pelo general Demerval Peixoto, e o jovem engenheiro também foi afastado da Prefeitura, em agosto. Seis meses, porém, bastaram para fazer sua fama. Nesse curto período ele alargou e pavimentou diversas ruas e avenidas; estimulou a construção de moradias populares; criou feiras livres; estabeleceu a semana de trabalho “inglesa”, liberando as tardes de sábado, uma antiga reivindicação dos comerciários; tabelou o preço do peixe na Semana Santa; e deu início a uma carreira de político e administrador de grande destaque na história recente de Pernambuco…

GESTOR POPULAR

Filho do professor Sizenando Elysio Silveira e de Laura de Souza Silveira, Pelópidas Silveira nasceu em 1915, no Recife. Estudou nos colégios Santa Margarida, Salesiano, Padre Felix, e formou-se em Engenharia Civil em 1935. Naquele tempo, sua cidade era mal calçada, mal iluminada, mal servida de transportes, quase sem saneamento e com uma população, na maioria, muito pobre — como ainda é, em grande parte, até os dias de hoje. E também era mal administrada, até porque o modo de escolher os gestores não ajudava. Durante a República Velha (1889/1930) os prefeitos só cuidavam dos interesses da elite, pois os analfabetos — cerca de 80% da população — não tinha direito a voto. E a partir da Revolução de 30 eles passaram a ser indicados pelos interventores estaduais, prestando satisfação apenas a quem os nomeara.

Contrariando, porém, um longo histórico de péssimos governantes, Pelópidas tornou-se tão popular que foi lançado candidato ao governo do Estado pela Esquerda Democrática (depois, Partido Socialista Brasileiro) e pelo Partido Comunista, em 1946.

Foi uma candidatura de protesto contra duas outras que representavam as oligarquias pernambucanas. E ele foi o mais votado no Recife e em sete municípios da região metropolitana, embora perdendo, no final, para Barbosa Lima Sobrinho (PSD), com os votos do interior. Então retornou à universidade e engajou-se na campanha “O petróleo é nosso”, a favor do monopólio estatal do chamado “ouro negro” (esse monopólio seria decretado em 1953, durante a segunda presidência de Vargas, mas até hoje é questionado, haja vista a polêmica em torno da questão do pré-sal). E foi novamente lançado candidato, em 1955.

Dessa vez, Pelópidas concorreu a prefeito do Recife, e venceu com cerca de 80 mil votos, contra 40 mil dos outros três candidatos, reunidos.

Das quatrocentas urnas recifenses, aliás, ele só perdeu em duas — ou seja, foi unanimidade entre o “asfalto” e a “poeira”, como os ricos e os pobres eram classificados pelo ex-interventor e governador Agamenon Magalhães. E, mais do que vitoriosa, aquela campanha foi o berço da chamada “Frente do Recife”, uma coligação progressista que levou Miguel Arraes ao governo de Pernambuco e pesou na balança política nacional durante uma década.

A FRENTE DO RECIFE

Chamada de “a noiva da revolução” pelo poeta Carlos Pena Filho, a capital pernambucana já possuía uma longa tradição em movimentos populares e democráticos, como a Revolução de 1817, a Confederação do Equador e a Revolução Praieira, entre outros, na primeira metade do século XIX, além das lutas operárias do início do século XX. E continuava rebelde. Em 1955, por exemplo, ela sediou o Congresso de Salvação do Nordeste, denunciando a miséria da região e a exigindo mudanças radicais, como a Reforma Agrária, com forte impacto na opinião pública brasileira. E a Frente do Recife foi mais um elo dessa corrente.Criada para concorrer às eleições municipais, ela reunia o PSB, o PTB e o PTN, com apoio do PCB, então na clandestinidade. E contava, ainda, com o apoio de sindicatos como os dos portuários e ferroviários, associações de bairro como as de Casa Amarela e Afogados, e de intelectuais e de setores progressistas da Igreja Católica. Pelópidas, que tinha um bom diálogo com todos esses setores, era o seu ponto de convergência.

Prefeitura e associações de bairro juntas pela cidade

A segunda passagem do engenheiro à frente do Recife foi igualmente bem sucedida. Pela primeira vez, o povo foi convidado a participar das decisões, e a integração foi tanta que se chegou a fazer obras públicas em regime de mutirão. As associações de bairro convocavam o pessoal da área, a Prefeitura entrava com o material e orientação técnica, trabalhava-se no final de semana e na segunda-feira o serviço estava pronto.

Nessa pisada, Pelópidas concorreu a vice-governador na eleição de 1958, pela coligação UDN/PSB/PTB/PSP/PTN, com Cid Sampaio na cabeça — um usineiro, mas com alguma visão progressista —, contra as forças conservadoras do Estado. E sua chapa ganhou, mas a vitória lhe criou um problema.

O fato é que, se ele se assumisse o novo cargo, a Prefeitura seria ocupada pelo vice Vieira de Menezes, um adversário político que mudaria o rumo do seu governo, no último ano de gestão. Então, Pelópidas se recusou a sair até dezembro de 1959, após um longo processo judicial e tendo garantido a eleição do seu aliado Miguel Arraes como o novo prefeito.

Em 1962, porém, Arraes deixou a Prefeitura do Recife, candidatou-se a governador de Pernambuco e venceu. Já Pelópidas disputou um mandato de deputado federal pelo PSB, naquela eleição. Mas, desinteressado em cargos legislativos e detestando fazer discursos, não se esforçou na campanha e ficou apenas com a suplência. Voltou, então, a ocupar a secretaria de Viação do Estado, em 1963, a convite do novo governador. Que, ainda naquele ano, o lançou mais uma vez candidato à Prefeitura do Recife, pela coligação PSB/PTB.

Novamente consagrado pelos recifenses, o terceiro mandato de Pelópidas foi ainda mais curto do que o primeiro. Durou apenas três meses. Um dia após o golpe civil-militar de 1º de abril de 1964 ele foi preso e teve seu mandato cassado por uma subserviente maioria de vereadores da Câmara Municipal.

Libertado no final daquele ano, o ex-prefeito passou por dificuldades financeiras até arranjar emprego. Com a anistia, em 1979, foi reintegrado à Universidade Federal de Pernambuco, mas logo se aposentou. E, após o fim da ditadura, ele viu Jarbas Vasconcelos tornar-se prefeito do Recife em 1985, pelo voto direto, após mais 22 anos sem eleições para o cargo.

Pelópidas Silveira morreu na sua cidade, em 2008, onde é lembrado como um dos seus melhores gestores, além de um grande defensor das causas populares, dando nome, hoje, a um hospital público no bairro de Curado e a um terminal integrado de ônibus no município de Paulista.
Na próxima semana, Dom Hélder Câmara.

Prefeito nota 10

Além das intervenções sociais e urbanísticas do seu primeiro mandato, Pelópidas, no segundo, reformou as avenidas Caxangá e Norte, ligou os bairros de Casa Amarela e Beberibe e abriu o canal Derby-Tacaruna. Também criou o Sítio da Trindade, aprimorou a legislação e o código tributário municipais, e fundou a Companhia de Transportes Urbanos (CTU), substituindo os antigos bondes por modernos ônibus elétricos. E para dar voz ao povo criou audiências públicas e estimulou a criação de associações
de bairro.

Barbosa Lima

Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho, recifense nascido em 1897, é outro nome de relevo na história contemporânea de Pernambuco e do Brasil. Advogado e jornalista, ele foi deputado federal antes de se eleger governador em 1946, derrotando Pelópidas, com apoio de Agamenon Magalhães. Foi também presidente da Associação Brasileira de Imprensa, membro da Academia Brasileira de Letras e de inúmeras outras instituições de prestígio, nacionais e internacionais, além de presidente do Clube Náutico Capibaribe. Em 1973, candidatou-se a vice-presidente da República na chapa de Ulisses Guimarães, desafiando a ditadura. Foi o decano das campanhas pela Anistia, vitoriosa em 1979, das Diretas Já, em 1984, e do impeachment de Fernando Collor, em 1992. E, além de receber dezenas de comendas, foi tema do enredo da Escola de Samba União da Ilha do Governador, em 1999.


Dom Hélder Câmara, o apóstolo da Democracia

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Ele foi amigo dos pobres e um dos maiores adversários do regime militar implantado no Brasil em 1964

Uma impressionante cerimônia realizou-se nas catacumbas de Domitila, uma das principais câmaras subterrâneas onde os antigos cristãos sepultavam seus mártires, em Roma, no dia 16 de novembro de 1965. Quarenta bispos católicos que participavam do Concílio Vaticano II, convocado pelo Papa João XXIII, lá celebraram uma missa e assinaram o “Pacto das Catacumbas” em defesa da chamada “Teologia da Libertação” — uma doutrina desenvolvida por padres latino-americanos que pregava a volta da Igreja às suas origens, ao lado dos pobres e dos oprimidos. E um dos mais atuantes desse grupo era um cearense pequeno, magrinho e cabeçudo que falava mansamente, mas fazendo gestos largos, parecendo querer abraçar o mundo.

Valente defensor dos Direitos Humanos, ele combateria a ditadura militar sem tréguas, usando como armas apenas a caridade, o amor ao próximo e a resistência não-violenta…

VOCAÇÃO RELIGIOSA

Hélder Pessoa Câmara nasceu em Fortaleza, em 1909, décimo primeiro dos treze filhos de João Eduardo Torres Câmara Filho, comerciário e jornalista, e da professora Adelaide Pessoa Câmara. Muito cedo quis ser padre e aos 14 anos ingressou no Seminário Diocesano, ordenando-se aos 22 com autorização da Santa Sé, pois não tinha a idade mínima exigida (25) para o sacerdócio. Logo fundou a Legião Cearense do Trabalho e, em 1933, a Sindicalização Operária Feminina Católica, reunindo lavadeiras, passadeiras e empregadas domésticas. Também dirigiu o Departamento de Educação do Ceará até ser transferido para o Rio de Janeiro, então capital da República, em 1936.

Nessa fase da vida, ainda jovem, o padre Hélder deixou-se seduzir pelo programa social da Ação Integralista Brasileira, que tinha como lema “Deus, Pátria e Família”. Mas logo percebeu quais eram os verdadeiros propósitos daquela organização de direita e saltou fora.

Em 1952, ele tornou-se bispo pelas mãos do cardeal Dom Jaime de Barros Câmara, com quem iria se confrontar, mais adiante. E naquele mesmo ano, com apoio do monsenhor Giovanni Montini, futuro papa Paulo VI e então subsecretário de estado do Vaticano, ajudou a criar a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que promoveria grandes mudanças na orientação da Igreja Católica no País.

Embora Dom Jaime, que era extremamente conservador, tenha assumido a presidência da CNBB, Dom Hélder se tornou secretário-geral e emergiu como uma nova liderança progressista. E foi adiante, cruzando fronteiras. Em 1955, articulou a fundação do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM), com sede em Bogotá, do qual se tornou presidente. Mas sem descuidar da sua diocese.

Em 1956, ele lançou a Cruzada São Sebastião, para dar moradia aos cariocas sem-teto. E em 1959 fundou o Banco da Providência, para acudir os que viviam em extrema pobreza.
As circunstâncias políticas, contudo, interromperam seu trabalho no do Rio de Janeiro.

ARCEBISPO VERMELHO

No início dos anos sessenta, o mundo vivia a “guerra fria” entre os Estados Unidos, capitalista, e a União Soviética (URSS), socialista. Na América Latina, com suas tremendas desigualdades sociais, a tensão cresceu ainda mais após a vitória da Revolução Cubana, em 1959, e se refletia no meio religioso. O Congresso da Juventude Universitária Católica (JUC), realizado no Rio, em 1960, por exemplo, estabeleceu como diretriz a “luta contra o subdesenvolvimento e a primazia do capital sobre o trabalho, em prol da reforma agrária e do controle estatal dos setores de base da economia”, fazendo com que Dom Jaime se recusasse a celebrar a missa de encerramento.

Em 1961, a posse do presidente Jânio Quadros, que defendeu a admissão da China na ONU, o reatamento das relações diplomáticas com a URSS, rompidas em 1947, e ainda visitou Cuba, atiçou o conflito ideológico no País. E os principais meios de comunicação deflagraram uma grande campanha anticomunista, da qual Dom Jaime participou ativamente com seu programa de rádio A voz do pastor.

Então, em agosto de 1961, após seis meses de governo, Jânio renunciou. O vice João Goulart, um progressista, assumiu a presidência, em 1962, defendendo “reformas de base”, entre as quais a Reforma Agrária. E a CNBB, influenciada por Dom Hélder, se pronunciou de forma categórica a favor das tais reformas.

Dom Jaime, em resposta, trouxe para o Brasil o padre norte-americano Patrick Peyton, que implantou a “Cruzada do Rosário em Família”, um grande instrumento de mobilização da classe média contra o governo Jango.

No dia 13 de março de 1964, houve um comício na Estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em defesa das reformas de base, com 250 mil participantes. No dia 19, porém, 500 mil pessoas desfilaram em São Paulo na “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, em protesto contra elas. No dia 1º de abril, Jango foi derrubado pelos militares. E, poucos dias depois, Dom Jaime transferiu Dom Hélder para a arquidiocese de Olinda e Recife.

Com o pensamento no céu, mas os pés na terra

O novo posto no Nordeste e a nova conjuntura, contudo, não o intimidaram. Já no seu discurso de posse, ele pediu: “não acusemos de comunistas os que apenas têm fome e sede de justiça”. E assim ganhou do afamado jornalista David Nasser o apelido de “Arcebispo Vermelho”.

“D. Helder só olha o céu para saber se leva ou não o guarda-chuva”, escreveu o também jornalista e teatrólogo Nélson Rodrigues. Gilberto Freyre o chamou de “Kerensky” (comunista russo) e “Goebbels” (nazista alemão). Isso, porém, antes da decretação do Ato Institucional no5 (AI-5), em dezembro de 1968, a partir do qual foram proibidas quaisquer referências a ele em todos os órgãos de imprensa brasileiros. Se a ditadura não podia prendê-lo e sumir com ele, como fez com centenas de outros oposicionistas, pois se travava de uma figura de projeção internacional, tentou torná-lo invisível em seu país, além de aterrorizá-lo.

A casinha humilde onde ele vivia, nos fundos da igrejinha das Fronteiras, desprezando o conforto do Palácio Episcopal dos Manguinhos, por exemplo, foi metralhada. Igrejas e prédios da Cúria e da CNBB foram invadidos. Sacerdotes estrangeiros foram expulsos. Mas o pior golpe sofrido por Dom Hélder talvez tenha sido a perda do padre Antônio Henrique Pereira Neto, seu pároco da Juventude, covardemente sequestrado, torturado, mutilado, assassinado e “desovado” na Cidade Universitária, no Recife, em maio de 1969.

Se a voz do bispo não era ouvida aqui, porém, ecoava mundo afora, denunciando as violações dos Direitos Humanos no Brasil. E, em reconhecimento à sua luta, ele foi indicado para o Prêmio Nobel da Paz, em 1970, que não lhe foi concedido devido a um grande esforço em minar sua candidatura, promovido pelo governo brasileiro. Mas ele ganhou o Prêmio Popular da Paz, na Noruega, naquele ano.

Por outro lado, toda essa perseguição fez até gente que discordava das suas ideias lhe prestar solidariedade. “Irmão dos pobres, meu irmão”, com essas palavras o papa João Paulo II o abraçou e saudou na visita que fez ao Recife, em 1980. E ele prosseguiu lutando. Como arcebispo, até 1984, quando completou 75 anos de idade, e como padre e cidadão até morrer, aos 90, no Recife, em 1999.

Dom Hélder Câmara recebeu em vida 32 títulos de doutor concedidos por universidades e de cidadão por 28 cidades, do Brasil e de outros países. Em 2015, o Vaticano deu início ao seu processo de beatificação. E na Igreja Episcopal Anglicana do Brasil ele já se encontra na galeria dos santos.

Teologia da Libertação

Surgida entre as décadas de 50 e 60, na América Latina, essa doutrina busca fazer do cristianismo também um instrumento de combate à miséria e à opressão. Segundo ela, o Reino de Deus está presente neste mundo, e os pobres não devem ser apenas objetos de caridade, mas apoiados na sua luta por melhorias de vida. Nos anos 80, a Congregação para a Doutrina da Fé, sob o comando do cardeal Ratzinger, depois papa Bento XVI, a condenou, acusando-a de eliminar o sentimento religioso e incentivar a luta de classes, e ela foi perdendo forças, gradualmente.

Padre Henrique

Eu tive a sorte de conhecê-lo, nos meus tempos de secundarista. Mulatinho, baixinho, magrinho, extremamente carismático, Henrique era adorado pela garotada. E tinha apenas 29 anos quando foi trucidado por criminosos que com isso pretendiam golpear Dom Hélder e aterrorizar a juventude. Mas o efeito foi contrário. No dia do enterro, a imprensa foi proibida de dar qualquer nota a respeito. Mesmo assim, milhares de estudantes nos mobilizamos (sem Internet nem celulares) e levamos seu caixão em passeata da Igreja do Espinheiro até o Cemitério da Várzea, ameaçados por um batalhão da PM durante todo o trajeto. E se eu e muitos outros não tínhamos, até então, grande interesse em política, o martírio desse herói pernambucano nos abriu os olhos e nos deu um rumo, daí para frente. (PSO)

Miguel Arraes, um homem que se tornou um mito

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Ele governou Pernambuco três vezes e foi um dos grandes líderes políticos brasileiros do século vinte

Uma cena presenciada na infância, no sertão do Ceará, ficou para sempre na sua memória: um grupo de flagelados da seca presos num curral, como se fossem bichos, para que, tangidos pela fome, não pudessem migrar para a capital, Fortaleza. “Era um horror difícil de compreender e marcou meu jeito de ver as coisas”, ele diria, adiante.

Na juventude, mudou-se para Pernambuco e tornou-se um político muito popular, um líder carismático que empolgava multidões, mesmo falando com péssima dicção. E, também, um governante competente, visto como forte candidato à Presidência da República. Seu “jeito de ver as coisas” — ou seja, o desejo de tirar da miséria a maioria do povo brasileiro —, contudo, o pôs em choque com as poderosas forças do conservadorismo, levando-o à prisão e ao exílio. Mas também fez dele uma figura legendária…

TRADIÇÃO FAMILIAR

Miguel Arraes de Alencar nasceu em Araripe, no Ceará, em 1916, filho dos produtores rurais José Almino de Alencar e Maria Benigna Arraes de Alencar, e entre seus antepassados estava a pernambucana Bárbara de Alencar, que liderou a Revolução de 1817, no Crato, ao lado dos filhos: Tristão Araripe, que também comandou a Confederação do Equador no Ceará, em 1824, e José Martiniano, depois senador do Império e pai do escritor José de Alencar.

Aos dezessete anos ele veio pra o Recife, matriculou-se na Faculdade de Direito e passou num concurso para escriturário do Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), ascendendo na hierarquia daquele órgão até o posto de delegado regional, em 1943. Nesse entretempo, casou-se com Célia de Sousa Leão, com quem teve oito filhos, e em 1948 assumiu a Secretaria de Fazenda de Pernambuco, a convite do governador Barbosa Lima.

Em 1958, Arraes estreou na política disputando uma cadeira de deputado estadual, sem sucesso. Em 1960, porém, uma coligação formada pelo PSB, PST e dissidentes do PSD o lançou candidato à Prefeitura do Recife, com apoio do prefeito Pelópidas Silveira, muito popular, do governador Cid Sampaio e da Frente do Recife, que reunia sindicatos, associações de bairro, setores progressistas da Igreja e o clandestino Partido Comunista Brasileiro (PCB). E ele venceu, com 83 mil votos (54% do total).

NO GOVERNO

Como prefeito, Arraes deu seguimento à gestão de Pelópidas e foi além, conseguindo aprovar um código de obras municipal e pondo em circulação os novos ônibus elétricos, além de apoiar a criação do Movimento de Cultura Popular, formado por artistas, intelectuais e estudantes, que realizou um extraordinário trabalho educativo junto à população carente.

Em 1961, sua esposa, Célia, faleceu. E em 1962, além de casar-se em segundas núpcias com Maria Magdalena Fiúza, com quem teria mais dois filhos, ele já foi lançado candidato ao governo de Pernambuco pelo Partido Social Trabalhista (PST), de novo com apoio da Frente do Recife. E com 48% dos votos — na época, não havia segundo turno —, derrotou João Cleofas, da UDN, representante das velhas oligarquias canavieiras.

À frente do Estado, Arraes fez outra grande gestão, especialmente para os trabalhadores rurais, que passaram a receber salário mínimo e outros direitos através do “Acordo do Campo”, firmado com usineiros e donos de engenho da Zona da Mata. Mas também deu muita atenção à ciência e à tecnologia criando, por exemplo, o Laboratório Farmacêutico de Pernambuco (Lafepe), para produzir medicamentos a baixo custo. Seu nome, então, passou a ser cotado para disputar a sucessão do presidente João Goulart nas eleições de 1965, tendo como concorrente, no campo da forças progressistas, apenas o governador Leonel Brizola, do Rio Grande do Sul.

O golpe militar de 1964, porém, interrompeu as trajetórias dos dois.

No dia 1º de abril daquele ano, tropas do IV Exército cercaram o Palácio das Princesas e Arraes foi intimado a renunciar ao cargo. Senão, seria preso. Mas ele recusou, “para não trair a vontade dos que o elegeram”, e foi trancafiado no 14º Regimento de Infantaria do Recife, depois em Fernando de Noronha. E estava na Fortaleza de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, quando foi libertado provisoriamente, em maio de 1965, por meio de um habeas corpus, e partiu para o exílio na Argélia.

Sua fama, entretanto, só cresceu, durante os quinze anos em que esteve fora, com a gente pobre do campo rezando pela volta do “Pai Arraia”. E ele retornou, após a Anistia, em 1979, como um verdadeiro mito, sendo recebido por cinquenta mil pernambucanos num grande comício, realizado no Recife.

Arraes filiou-se, então, ao MDB — um dos dois únicos partidos permitidos pelo regime militar, de oposição e adversário da Arena, apoiadora do governo —, mas não pôde candidatar-se novamente ao governo de Pernambuco, como gostaria.

Na sua ausência, outras lideranças regionais surgiram e cresceram na luta contra a ditadura, como Marcos Freire e Jarbas Vasconcelos. E Marcos conseguiu a indicação do PMDB (ex-MDB), com apoio de Jarbas, em 1982, nas primeiras eleições diretas para os governos estaduais que ocorreram no País, em vinte anos. Mas perdeu a disputa para Roberto Magalhães, da Arena, enquanto Arraes elegeu-se deputado federal.

Com um olho na miséria e outro na tecnologia

Nas eleições de 1986, porém, com o país já redemocratizado, o mito voltou ao Palácio das Princesas “entrando pela porta que saiu”, como dizia seu jingle de campanha — ou seja, a porta da frente, através do voto popular. Pelo PMDB, ele derrotou o candidato do PFL (ex-Arena), José Múcio Monteiro, e, novamente, deu grande atenção aos pequenos agricultores por meio de programas como “Vaca na Corda”, que financiava a compra de uma vaca, e “Chapéu de Palha”, que empregava canavieiros em obras públicas, na entressafra da cana. Mas ocupou-se, também, da eletrificação rural e criou a primeira Secretaria de Ciência e Tecnologia do Nordeste, assim como a Fundação de Amparo à Ciência do Estado (Facepe).

Ao deixar o cargo, em 1990, Arraes filou-se ao Partido Socialista Brasileiro (PSB) e por essa legenda tornou-se governador pela terceira vez, em 1994, aos 78 anos. Interessado, como sempre, em ciência e tecnologia, ele implantou um sistema que dava acesso à Internet aos municípios do interior, criou um parque de eletro-eletrônica (Parqtel), um programa de incentivo a essa área (Peditec), e uma biofábrica de açúcar em Itapirema. Mas enfrentou uma grave crise financeira no Estado, e a oposição do seu partido ao então presidente Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, também não o ajudou em nada. Em consequência, não conseguiu se reeleger governador, em 1998, perdendo para seu ex-aliado e ex-prefeito do Recife, Jarbas Vasconcelos, do PMDB, que obteve mais de 64% dos votos.

Em 2002, o mito venceu sua última eleição, para deputado federal, pelo PSB. E com o seu partido passou a integrar a base de apoio do presidente Lula, do PT, tendo seu neto e herdeiro político, Eduardo Campos, como ministro da Ciência e Tecnologia. Em junho de 2005, porém, ele foi hospitalizado com suspeita de dengue, a partir daí surgindo uma série de complicações que o levaram à morte, aos 89 anos.

Miguel Arraes dá nome, hoje, a diversas ruas e avenidas em todo o Brasil, e a um hospital, em Pernambuco. E no ano do seu centenário foi homenageado pela Escola de Samba Unidos de Vila Isabel, do Rio de Janeiro, que fez dele seu enredo, no carnaval de 2016.

O MCP

O Movimento de Cultura Popular chegou a contar, entre 1960 e 1964, com cerca de 200 escolas, 450 professores e 20 mil alunos, oferecendo cursos de alfabetização, artes e artesanato. Com apoio de educadores como Paulo Freire e artistas como Ariano Suassuna, Francisco Brennand, Hermilo Borba Filho e Abelardo da Hora, entre outros, inspirou ações semelhantes em vários estados. No dia 1º de abril de 1964, porém, dois tanques de guerra se posicionaram em frente à sua sede, no Sítio da Trindade — local onde estivera o Arraial do Bom Jesus, quartel-general da resistência contra os invasores holandeses, entre 1630 e 1635. Toda a sua documentação foi, então, queimada; obras de artes foram destruídas; e os seus funcionários, demitidos.

Paulo Freire (1921/1997)

Este educador recifense, cujo trabalho despontou no MCP, desenvolveu o que se tornou mundialmente conhecido como “Método Paulo Freire”, unindo educação e formação da consciência política, e com o aluno construindo seu próprio aprendizado, em vez de seguir um caminho pré-estabelecido. Inicialmente só usado na alfabetização, esse método logo se estendeu para outras áreas, e seu criador, também exilado após o golpe de 1964, recebeu 29 títulos de doutor honoris causa de universidades europeias e americanas, ganhou o prêmio “Educação para a Paz” da Unesco, em 1986, e em 2012 foi declarado Patrono da Educação Brasileira.





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